Incômodo

“Todos os livros são bons, até o momento em que você abre dostoiévski.”

Pensei alto. Não, não saiu nenhum som involuntário de minha boca, mas a mocinha do caixa sorriu para mim como se tivesse percebido alguma coisa pelos traços de meu rosto provocado pelo pensamento alto.

- São sessenta e nove reais e noventa centavos, senhor.

Ela continuou com um vago sorriso que escorria por um dos cantos de seus lábios. Parecia que queria me falar alguma coisa, alguma coisa impulsiva que era controlada pelo olhar austero do gerente. Um sujeito grandalhão com cara de “poucos amigos” para os funcionários e um grande dissimulador de “simpatia” para os clientes que compravam. Eu recebi as duas caras do gerente porque estava próximo da mocinha do caixa. Alguma coisa a incomodava. Alguma coisa sempre está nos incomodando. Até mesmo o gerente “caxias” tem algum incômodo.

- O senhor possui nosso cartão fidelidade?

- Não.

- Não? Gostaria de fazer o cadastro e acumular pontos nas compras, senhor?

Aquele “senhor” já estava me incomodando, mas parecia que ela queria me incomodar com o que a incomodava. Resolvi gastar mais alguns minutos com ela, dando-lhe oportunidade de falar.

- OK, o que você precisa?

- Apenas o seu ce-pê-efe, senhor.

- OK.

Fiz o cadastro e nada mais. Ganhei os pontos pela compra de dostoiévski e saí. Talvez interpretei errado a mocinha. Fui tomar café com um amigo.

- Por que essa mania de comprar sempre uma nova edição de crime e castigo?

- Ora, você sabe que eu gosto. Cada um coleciona o que lhe agrada.

- Sei.

Quando cheguei em casa peguei dostoiévski e coloquei ao lado das outras edições. Uma ponta da folha se projetava para fora do livro novo. Aquilo me irritava. Abri o livro e um papelzinho caiu da página cinquenta-e-um. Havia algo escrito no papelzinho. Letra feminina. Letra da mocinha do caixa. Senhor, desculpe-me o atrevimento. Estava lhe observando na loja e vi que tem um gosto diferenciado para literatura. Eu tenho um blog... Ela me pedia para ler seus escritos literários em seu blog e gostaria de saber se deveria continuar escrevendo ou desistir e se render à austeridade do gerente. Li. No papelzinho tinha o seu celular. Mandei-lhe uma mensagem: Rose, não pare de escrever. Carlos, o cara do dostoiévski.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 24/07/2017
Código do texto: T6063805
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