Três palavrinhas

E durante a primeira leitura da peça, em torno de uma mesa quadrada no palco do teatro vazio, Roberta criticou o número musical na abertura do segundo ato:

- A peça é um drama, não um musical. Isso vai quebrar o ritmo, sem necessidade.

Na cabeceira da mesa, João ergueu a sua fotocópia do roteiro.

- Sem contar que não há nenhum cantor profissional no elenco. Eu não canto nem no chuveiro.

No extremo oposto da mesa, Avelar, o diretor, ergueu as mãos pedindo calma.

- Vocês pelo menos tem ideia de que música é essa, e qual a sua importância no contexto da peça?

- "Three Little Words"... - leu Carla, sentada à esquerda de Avelar, com sotaque estudadamente britânico.

Avelar prosseguiu, seguindo o texto com o dedo:

- ...que são, naturalmente "I love you". Ora, a nossa peça é sobre encontros e desencontros, pessoas que se esbarram na vida e acabam por se perder. Então, na abertura do segundo ato, Heitor, o personagem do João... recebe a visita de Mira, a personagem da Carla... e ele canta essa música como uma celebração ao amor que ela diz que lhe dedica, depois da separação no fim do primeiro ato.

- Ele não pode simplesmente declamar? - Sugeriu João. - E dar alguns passos de dança?

- Um pas de deux! - Carla bateu palmas.

Avelar levou a mão ao queixo, ar pensativo.

- Pode ser... colocamos a música instrumental em playback, e você declama a letra, depois que Mira se declarar. Aí vocês dão alguns passos de dança pelo palco... precisaremos de alguém para bolar uma coreografia.

- Nada de muito complicado - ressaltou João. - Eu também não sou dançarino.

- Você nem tenta disfarçar - Carla bateu no ombro dele, de leve, com sua cópia do roteiro enrolada. - Desse jeito, nunca conseguirá um papel num musical em São Paulo.

Ele deu de ombros.

- Não quero fazer musical em São Paulo. Quero fazer off-off-Broadway em Nova Iorque.

- Boa! - Exclamou Avelar. - Roberta?

Roberta colocou as mãos sobre a mesa, palmas viradas para baixo, ar determinado no rosto.

- Eu também quero sugerir uma alteração... mas para o terceiro ato.

- Nada de número musical, suponho.

- Não, não é um número musical. É um contraponto a ele, aliás.

E esticando e encolhendo os dedos sobre a superfície de madeira:

- No trecho em que ela diz para Heitor que também tem três palavrinhas para ele, eu gostaria de sugerir uma troca do "seja muito feliz"... dito em tom duro... por um singelo "vá se f****".

E no silêncio que se seguiu, concluiu:

- E ela sai de cena cantarolando "Three Little Words". Não se preocupem, vai à capela mesmo.

- [19-07-2017]