O fazedor de letras

- O que você faz?

- Faço letras.

- O curso?

- Não. Letras mesmo.

- Ah, sim. Um fazedor de letras. Trabalha em publicidade?

- Não. Bem, já trabalhei, mas hoje só faço letras, mesmo.

- E dá pra viver disso?

- Sim. Dá pra terminar de viver fazendo letras.

- Hum... Mas me referia a dinheiro...

- Ah, sim. O maldito dinheiro, né? Não, faço letras por prazer, pra mim mesmo. O dinheiro vem de outra atividade.

- Esperto. Garantiu a grana e agora vive de prazer.

- Mais ou menos.

- E por que escolheu as letras?

- Porque elas proporcionam mais liberdade e preciso de liberdade.

- Liberdade?

- Sim. Veja os números. Eu poderia optar pelos números, mas eles seguem à risca o imperativo categórico de Kant.

- Imperati...? Categóri...? Cánt?

- Esquece isso. Olha, os números são muito corretos e não deixam margem para discussão. Na verdade eles acabam com qualquer discussão, qualquer diálogo. Eles fazem tudo ser conclusivo. Eles finalizam.

- Finalizam?

- Sim, veja. Em todas as conversas no mundo todo, três mais dois sempre será cinco. E fim.

- É verdade. E as letras? Elas também seguem regras, não?

- Sim, regras rígidas de acadêmicos parasitas. Regras feitas por letras escritas pelas mãos de parasitas. Mas sempre há a literatura marginal, alternativa, rebelde, etc. Veja que até mesmo o “etc” é infinito.

- Como os números...

- Sim, como os números. Mas os números são infinitos na mesmice e as letras são infinitas em novidades.

- Bonito isso.

- Sim, acho belo mesmo. As letras são a beleza do mundo. Os números são a concretude, a dureza desse mundo. Não há poesia em estatísticas, em comprimentos, em unidades, dezenas, milhares. As letras dão sentido à vida. Os números ignoram os sentidos, apenas relatam friamente os fatos. As letras são usadas em todas as áreas de conhecimento, adaptável, contraditória, revolucionária, conservadora, religiosa, iconoclasta, romântica, em resumo: elas são tudo.

- Difícil não concordar. Mas os números são necessários.

- Absolutamente, mas sem as letras, eles fariam com que a existência fosse insuportável.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 11/07/2017
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