A lua de Marialva

Não precisa me esperar, pois não vou voltar –disse com voz ríspida e firme em sua decisão e, encerrou a ligação. Do outro lado da linha ela ainda pode ouvir um, mas... se perder no vazio.

Uma sensação branca invadira a sua alma, como se uma borracha tivesse limpado tudo, não apenas o seu coração, mas toda a sua vida... a decepção é a pior coisa que podemos sentir, pensou Marialva, nunca tive nada mesmo a não ser a lua para me desabafar, sempre foi sonhar acordada, querendo fazer surgir do nada alguma coisa que me desse um pouco de colorido a vida... mas concluíra já a muito tempo que tudo isso era inútil e seguiu em sua indignação em relação a si mesma. Do que valeu ter me esforçado tanto, ou você nasce pintor ou não nasce, mas o mundo insiste em dizer que todos nós somos capazes e, nos entregam as tintas de vários sonhos para pintarmos um quadro já iniciado por um pintor que desconhecemos, empolgados com a profusão de cores que vão aparecendo no quadro ao iniciarmos, com nossas próprias mãos a pintura da vida, nos convencemos de que somos Salvador Dali, ledo engano... como eu fui burra, como eu fui besta, o que fazer agora, sei lá...

Era uma manhã ensolarada, apesar de uma brisa fria soprar em seu rosto, ainda carregava o gosto da decepção em sua boca, rouca de gritar para si mesma em pensamento, resolveu calar sua tristeza embrionária que haveria de crescer enormemente até o final daquele dia... vou ao centro da cidade, quero andar, pensou, não quero ver ninguém, não quero falar com ninguém... quero andar, simplesmente andar... pegou o metrô, como sempre lotado, mas não se incomodou, olhava pra pessoas com um ar de superioridade, como quem conhecia a inocência de cada uma delas em relação a vida e, aquilo lhe deu uma estranha paz por se sentir livre, a liberdade é solitária sem cor, sem cheiro, sem gosto é insípida como a água, concluiu em seu pensamento. Apesar de lotado, ela conseguiu ficar próxima da janela e então pode divisar a lua, branca, pequena e distante... sempre se impressionara com aquele satélite da Terra ali parado como que assistindo a tudo e a todos, quando criança tinha sonhos recorrentes de que viajava até a linda bola branca para se esconder dos seus medos e de suas obrigações de criança...

Mãe, mãe... uma aranha...

Calma, filha ela não faz nada...

Faz, sim...

Menina, vá escovar os dentes...

Já vou mãe... –respondia ao comando da mãe, uma, duas, três, quatro, infinitas vezes, sem se dar ao luxo de sair do lugar aonde estava com suas bonecas.

Menina, já fez a lição de casa...

Já vou mãe, já vou... – gritava irritada em resposta para que a mãe pudesse ouvi-la.

Menina vai já tomar banho...

Já vou, já vou, calma...estou guardando as minhas bonecas...

O pai se despediu com um olhar lânguido numa tarde fria de inverno quando ela tinha apenas onze anos de idade, ficou a saudade dos dias em que ele pulava em sua cama para brincar até faze-la dormir, via naquele homem uma pessoa enigmaticamente, triste, muitas vezes o pegava com os olhos enuviados, como que anunciando uma tempestade que nunca caia... a tempestade caíra dos olhos de sua mãe ao vê-lo ir embora, fora apenas uma vez visitar seu tumulo no cemitério e, aos dezoito anos apagara aquela cidade definitivamente de sua vida... cursara a faculdade com tanta dificuldade, que não fora apenas um curso universitário, mas sim, um aprendizado de vida... já se encontrava casada naquela época e tomada por uma forte intuição de que fizera uma grande besteira... sorria, quando estava de bom humor de sua própria inabilidade para com a sua opaca existência, as amigas a achavam muito engraçada em suas brincadeiras em tons de ironia... não tinha respaldo de ninguém, o marido fingia não a entender, ou de fato, não a entendia mesmo...

A cada estação o vagão ficava mais lotado e, ao toque das pessoas a sua volta, em seu corpo, lhe era indiferente, olhava através da janela, a paisagem silenciada pelo isolamento do vagão do metrô, eram prédios e mais prédios, carros e mais carros, congestionamento, buzinas impacientes, rasgando o silêncio, vez por outra e o gosto de nada em sua boca, perdurava... e mesmo assim lá estava ela, a mesma desde de que se entendia por gente, em pleno dia daquela manhã de sol, se sustentando até onde podia, para dividir com o sol, o mesmo céu, logo ela desaparecerá e, então só a noite... chegara sem perceber à estação final, e simplesmente descera alheia a tudo e a todos, caminhava sem direção, pois até ali, até aquele dia, direção fora uma coisa que ela nunca entendera muito bem em sua vida... fechada em seu próprio mundo, desconfiada da índole de cada ser humano que cruzava o seu caminho... gostava de levantar a cabeça como que vai soltar um grito, para contempla-la mergulhada em suas indagações acerca de suas encanações e, até algumas felicidades... a lua antes mesmo de ser companheira dos amantes, era a sua inseparável companheira, erguer a cabeça para acaricia-la com suas lágrimas era nada mais que um ritual sem o qual, talvez sequer a vida, fizesse algum sentido... caminhou poucos metros e resolveu sentar-se num banco na plataforma... não volto pra ele, não volto para aquilo que tenho tentado me convencer, de que é uma vida... nesse momento o celular tocou...

Alô... –disse tomada uma de raiva incontrolável –já disse eu não vou voltar, fique com essa merda que você insiste em chamar de vida, de casamento, ou sei lá o quê...

Aonde você está...

Não lhe interessa, chega, chega... eu não quero mais isso...

Mas, estava tudo perfeito, o que foi que deu em você, mulher...

Não me chame assim... mulherrr, que mania mais besta...

Ué, você nunca reclamou...

Pois é, eu devia ter reclamado, essas suas manias me irritam profundamente...

Nossa, calma...

Calma, porra nenhuma... e você quer saber eu nunca te amei...

Como que é...

É isso mesmo que você ouviu...

Você está nervosa, depois a gente conversa, vá dar uma volta para esfriar a cabeça...

A linha ficou muda do outro lado de repente sem que ela tivesse a chance de dizer tudo que estava entalado em sua garganta...

Filho da puta... desligou na minha cara...

Algumas pessoas a olhavam com indiscrição e, isso a fez ficar ainda mais nervosa, levantou-se e se dirigiu a escada rolante... bando de gente imbecil, pensou... como que uma vida toda pode ter sido feita assim de remendos, de ponderações, de racionalidades, de esperas... calma filha você é muito desesperada, dizia a mãe sempre que pressentia que ela iria surtar... passou pelas catracas e foi descendo a rampa que dava acesso a estação, à alguns metros tinha uma avenida que ela atravessou perdida em seus pensamentos e nem notara que o sinal tinha aberto e, só pode perceber quando uma buzina quase a deixou surda, deu um pulo para o meio fio e seguiu em direção ao parque... renunciara aos seus projetos por causa dos planos dele... calma no momento certo a gente combina de você terminar os seus projetos, nem sequer ele sabia que projetos eram esses... e a maldita paciência que eu tinha que inventar dentro de mim, para não parecer egoísta... e então só ela lá encima me dava ouvidos, só ela em seu silêncio poderia proferir as interrogações que eu a mim mesma sempre fazia... será que estou agindo certo... será... será... será que não é melhor esperar mais um pouco... será... será... e esses serás acabaram com a minha vida... sentou-se num banco debaixo de algumas árvores frondosas que deixavam transpassar a luz de um dia que já começava a entardecer... só então se lembrou a caminho do parque passara por uma banca de jornal e uma manchete lhe chamara a atenção... “hoje em todo o país poderá ser vista a super lua” ... quanto vazio haverá lá encima, com certeza menos do que aqui em meu peito e, deu um suspiro profundo ah... essa vida nunca parecer ser minha, parece que estou assistindo a mim mesma, como a lua lá encima assiste a todo nós... levantou-se de banco, ficara ali por mais de três horas observando as pessoas ir e vir, pra lá e pra cá... vez por outra parecia que ficaria melhor, mas logo vinha novamente aquela angústia de alma... não queria chorar, estava seca por dentro e por fora, os filhos depois que chegaram a adolescência tinham se transformados em duas pessoas completamente estranhas a ela, mal notavam a sua presença, tinha consciência de que não era uma pessoa fácil, mas sempre tentara dar amor e carinho... e o marido mesmo sem ama-lo, sempre que podia fazia-lhe surpresas e tentava construir uma relação feliz...

Pois, não...

Me dá uma cerveja...

Mais alguma coisa...

Não só isso... –não dá nem pra tomar um bom vinho, pensou consigo –ah, por gentileza me vê um maço de cigarros...

Ah, sim, já trago...

Saíra do parque antes que ele fechasse e caminhou sem direção por muito tempo até se cansar e resolver parar naquele bar, que para ela, até que era arrumadinho, pensou consigo assim que decidiu entrar...

Aqui está...

Se precisar de mais alguma coisa, é só me chamar... –disse o rapaz dando-lhe um sorriso de garçom...

Ok, obrigado –ela respondeu indiferente àquele sorriso mecânico...

Duas mulheres que estavam sentadas numa mesa à sua frente, mas um pouco afastada, a olharam discretamente quando ela mais uma vez olhou para o céu como se estivesse procurando algo perdido, mas assim que notaram que ela tinha percebido que as olhava, desviaram o olhar... Marialva deu o primeiro gole como quem acabara de atravessar um deserto e precisou enche-lo novamente, enquanto virava a garrafa sobre o copo, ficou contemplando o líquido cor de ouro crivado de borbulhas que subiram e formaram um colarinho branco... ah, como eu precisava disso hoje, pensou consigo mesma... levantou o copo e ficou olhando para ele como se estivesse enxergando nele toda a sua dor, virou mais uma vez tomando tudo até secar o copo, e repetiu várias vezes o mesmo ritual...

Hei, vê mais uma pra mim...

Mais alguma coisa...

Não, só isso...

O dia foi minguando os seus últimos raios de luz, Marialva estava ansiosa para ver sua grande amiga muda e prateada, iluminar a noite que estava prestes a engolir o dia. Olhou a sua volta, o barzinho já estava cheio e o crepúsculo decorava o céu de vermelho, de repente um som quebrou um pouco o murmurinho das pessoas conversando, à princípio não soube distinguir direito, o efeito da cerveja já havia atingido os seus sentidos, mas em um átimo de segundos pode identificar, era ela, não é possível, não acredito que é essa música, meu Deus o que eu fiz com a minha vida, disse a si mesma e virou mais uma vez o copo de cerveja... aquela música era o princípio de tudo, de quando ela achava que o que sentia era amor, mas só muito tempo depois pode concluir que não, não era amor, mas tudo bem, não importa não havia mais disposição alguma para tentar novamente, as lembranças do prelúdio de sua vida, regada ao som daquela música, naquela época, jurava que iria se acostumar com as manias dele, com aquele jeito de ser, a vida era tão grande naquela época, parecia tão minha naqueles dias em que amar era apenas aceitar o que a vida lhe tinha proporcionada, pensou absorta... aquela música emoldurava a ingênua sensação de felicidade... aquela música era a saudade que a mantinha ligada a ele, não aquele que deixara em casa, mas aquele dos primeiros meses antes que viesse sua primeira solidão...

Acordara indisposta e envolta numa nuvem de solidão nostálgica, sentou-se à mesa e disse bom dia... o som estava ligado e de repente aquela música que a muito tempo não ouvia... seus olhos encheram que lágrimas, mas ela conseguiu represa-las antes que ele notasse, com uma voz tristes e olhar distante, comentou...

Essa música é tão linda...

É, é muito bonita –disse ele, também com o olhar distante e concluiu –toda vez que a ouço, me lembro da Silvia...

Silvia... nossa pensei que você lembrasse da gente... sou uma idiota mesmo...

Hei, calma...

Calma uma porra meu, vai se foder... –e levantou-se como um furacão e, bateu à porta as suas costas...

Como ele pode roubar-lhe a única coisa que lhe restara, a única ponte entre eles dois... nesse instante ela pode enxergar no céu sua única companheira brilhando o seu olhar solitário sobre ela... especialmente naquela noite, sua luz estava amarelada, como amarelada e desgastada estava usa própria existência... a música de fundo, o coração doendo-lhe a alma e a lua brilhou finalmente em seus olhos uma espessa lágrima...

Edgar Souza
Enviado por Edgar Souza em 06/04/2017
Reeditado em 07/04/2017
Código do texto: T5963374
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