Cândido: um Raskolnikov dos trópicos

[O deputado Luiz Teodoro responde sobre, junto à Polícia Federal, a sacola com mais de 20 milhões de dólares encontrada em seu gabinete, dinheiro que seria usado para a construção da duplicação da rodovia que liga as duas cidades mais importantes do país.]

Estes comentários nas emissoras de rádios do país já viraram rotina. Para toda a nação era caso perdido, mas não para Cândido. Cândido se martirizava, sofria, não dormia. Não aceitava ser governado por uma malta de salteadores. “Como o povo podia aceitar uma coisa dessa?”. Pensava Cândido. O que mais o deixava contrariado era quando um desse vil bandido era preso, vinha a justiça e o libertava. Quando aparecia, por milagre, alguém honesto na polícia, tinha uma centena de desonestos na justiça. Ele sabia que vivia num país perdido, uma nau à deriva. O mais triste que só ele permanecia a bordo, porque a maioria já havia abandonado o barco.

Desde pequeno Cândido era assim. Tudo fazia com exatidão, talvez porque fora criado por um pai bastante austero. Exigia que seus filhos tivessem comportamento elogiável. Não aceitaria nenhum tipo de reclamação sobre o comportamento de seus filhos. Estes era sabatinados dia e noite sobre como se comportar de maneira correta em sociedade. Não era um sujeito violento, mas exigia disciplina. Dessa forma jamais teve a necessidade de castigar um filho seu, pois a conversa franca e o exemplo que ele mesmo dava aos filhos eram muito eficientes na educação dos jovens. Cândido era o exemplo vivo de sua própria disciplina, algo que fugia a regra neste país de bons discursos e péssimos costumes.

Amélia era a mulher perfeita para Cândido. Não que fosse um exemplo de moralista, mas por ter a capacidade de adaptação. Amélia era daquelas mulheres sem opinião, mulheres que vivem uma vida simples porque prática e segura. A única coisa que Amélia fez além da simplicidade de sua visão de mundo foi se apaixonar por Cândido. Apaixonada, apenas teve que se adaptar ao mundo de seu marido e abandonar o mundo de seu pai. O interessante que o pai de Amélia tinha posições muito contrárias aos de seu genro, mas ela, com uma Habilidade fora do comum, se adaptou de forma brilhante ao novo mundo que adentrara. Neste novo mundo adaptada, Amélia se sentia segura e feliz.

- Onde nós iremos parar com tanta roubalheira? Este país é uma escola de bandidos!

Esbravejava Cândido, sentado em sua poltrona com o jornal nas mãos e os olhos na televisão.

- Calma, meu amor... Não ligue para isso, o que podemos fazer?

Mesmo Amélia tendo a capacidade de adaptação tentava acalmar o marido. Mesmo sabendo que seria em vão, mas fazia como por instinto.

- Calma, Amélia? Calma? Como ter calma diante destes usurpadores, bandidos, salafrários, canalhas, cafajestes? Não há um que se salve! Nenhum!

Ela sabia que quando vinha a relação dos xingamentos era porque ele estava chegando ao estágio do surto e era melhor ficar calada. E ficava ali, ouvindo aquele homem cheio de ódio por causa da vergonha. A vergonha de pertencer a mesma nação daquela corja.

Certa vez, Cândido dissera que se tivesse uma arma mataria um desgraçado deste. Para Amélia, nada que saía da boca daquele homem era bravata. Ela o conhecia muito bem. Enfim, para descanso de Amélia, tocara a campainha e devia ser a visita do amigo Gutierres. Gutierres era o melhor amigo de Cândido, amante da literatura nacional e internacional, como dizia o próprio Cândido. Cândido tinha prazer nas prosas com Gutierrez, pois este tinha a habilidade em ouvir suas queixas e sempre trazer novidades literárias, as novas e as antigas.

- Olá, Cândido! Como vai?

- Mal, muito mal, meu amigo. Basta ligar a TV ou o rádio pra acabar com meu bom humor...

- Ah, Cândido, não fique assim! Este país não tem jeito. É caso perdido...

Gutierrez sabia que falando desse jeito irritava seu amigo e ele adorava vê-lo à flor-da-pele. Nesse momento, Amélia se irritava com Gutierrez, pois não gostava de ver o marido fora-de-si. Costumava ralhar com o amigo e suplicava que parasse de perturbar o pobre Cândido. Gutierrez, com uma falsa moral, pedia desculpas a amiga. Amélia mesmo sabendo que este comportamento poderia ser prejudicial ao marido, achava boa as visitas de Gutierrez, pois era o único que ouvia as lamúrias e fazia rir seu amado. E como riam os dois.

Este termo: “não tem jeito”, era insuportável para Cândido. O que não tinha jeito era a morte, mas para tudo havia um jeito. Cândido costumava lembrar um professor que teve no ensino médio. Santos. Professor Santos, professor de História. Com este professor, Cândido aprendera amar e odiar seu país. Gostava de repetir algumas interjeições de seu amado mestre: “Sabe o que falta a este país? Moral! Este país é imoral! Só tem duas coisas a fazer: chicote e bala! Só isso, meus jovens, só isso!”. Quando Cândido repetia estas palavras, seus olhos enchiam-se de lágrimas e Gutierrez caía na gargalhada.

Naquele dia, Gutierrez estava com um volume de Crime e Castigo de Dostoievski. Cândido não era muito de leituras, mas gostava dos resumos feitos pelo seu amigo das diversas obras literárias que costumava ler. Não pense que nosso herói era tão ingênuo de acreditar em qualquer resumo, mas gostava dos resumos de Gutierrez, pois o tinha em alta confiança. Eram amigos de infância. As famílias sempre se conheceram. E só a longa convivência desenvolve nas pessoas a capacidade de identificar as várias mentiras e as raras verdades no espírito humano. Quanto às palavras literárias de Gutierrez consistiam nas raras verdades que ousavam sair de sua boca.

- Cândido, você conhece esta obra de Fiódor?

Era assim que Gutierrez se referia ao autor russo, Fiódor. Achava bonito chamar os grandes mestres da literatura pelo primeiro nome, pois dava-lhe um ar de intimidade. Quando se referia a Drummond, chamava-o de Carlos. E assim ia.

- Sim, apenas de nome. Você sabe que não tenho paciência para longas histórias. Sou prático. Gosto de coisas objetivas, se Dostoievski tivesse escrito pequenas historietas seria-lhe um leitor assíduo. Mas,...

Antes que terminasse seu discurso, Gutierrez o interrompera, pois já conhecia muito bem aquele lenga-lenga verbal de Cândido.

- Bem, estou lendo uma obra que aprecio muito de Fiódor. Crime e castigo, já ouviu falar?

- Sim, é claro que já ouvi falar. Mas o que gosto mesmo é da sua versão...

- Eu sei, eu sei. Bem, é a história de um jovem que decide acabar com a vida de uma velha, a quem deve muito dinheiro. Esta velha vive de emprestar dinheiro ao povo e cobrar altos juros. Ela é conhecida pela sua avareza e falta de piedade. Coitado daquele que caia em suas mãos. O herói de Fiódor resolve então acabar com sua vida, pois esta é responsável pelo sofrimento de muitos. Talvez não seja um mal aniquilar um ser que tem aniquilado várias vidas, que tem levado muitos à ruína. Estas divagações vem à mente de Raskolnikov como justificativas. O interessante, Cândido, que após nosso amigo ter acabado com a velha, passa a ser atormentado pela sua própria consciência.

- Consciência? Ele se sente culpado de ter matado a velha?

- Sim. Raskolnikov não é um assassínio. Aquilo passa a atormenta-lo a existência. Fica doente. Sofre muito.

- Fraco! Pela moralidade isso deve valer!

- Calma, Cândido, calma! Mas a moral diz: não matarás! E esta moral assombra nosso herói. A moral cristã. O pecado mortal, imperdoável. A vida pertence a Deus e jamais pode ser tirada, a não ser por Deus! É esta moral que impera e oprime Raskolnikov!

- Sim, não matarás! Mas a moral também exige punição. Se não punirmos o vício, o vício torna-se moral. No mínimo perde-se a referência do certo e do errado. Entendo que Raskolnikov não seria a autoridade designada pela Lei a cometer tal punição. Mas, pergunto-lhe, Gutierrez: e se as autoridades fossem corruptas e favorecessem e fortalecessem esse tipo de gente, como esta velha agiota? Até quando se deixaria as pessoas à mercê da boa vontade das autoridades corruptas? O homem de bem deve zelar pelo bem e não pelo mal.

- Ok. Concordo em parte com você. Mas você entende o sofrimento do jovem Raskolnikov? Pois acho que esta obra tenta destacar esse sentimento, entende?

- Sim, entendo.

- Outra coisa, Cândido, já pensou se todos pudessem julgar e punir a partir de seus próprios princípios? Isso se tornaria um caos. O primeiro que se achasse oprimido por alguém, se acharia no direito de eliminar seu opressor. E neste país, onde se aprende o erro no próprio seio familiar, o que isso se tornaria?

- O que isso se tornaria? O que isso já se tornou!

- Sim, exatamente isso.

- Peraí, Gutierrez! Você quase me enganou! Esse Raskolnikov devia dinheiro pra velha, não?

- Sim...

- Por um acaso a velha lhe obrigou a pedir-lhe dinheiro? Ou foi uma decisão livre dele?

- Claro que não o obrigou, foi sua própria escolha...

- Sim. Aí, ele não tendo como pagar a velha resolveu criar uma porção de justificativas para liquidar a velha, pois isto seria mais fácil que liquidar a dívida, não?

- Bem, não é bem isso que Dostoievski queria...

- Dostoievski? Não era Fiódor o nome do autor?

Sempre que Gutierrez ficava sem argumentos, como um passe de mágica, tomava uma postura

Mais defensiva, mais acadêmica. Ele sabia que Cândido, mesmo sendo um homem de inteligência prática e não acadêmica, poderia se enrolar diante de um tom mais intelectual.

- Sim, Fiódor Mikailovitch Dostoievski.

- Muito bem, meu amigo, agora o sujeito tem nome e sobrenome.

Agora Cândido caía na gargalhada, pois sabia que Gutierrez estava enrolado diante da situação.

Cândido pensava que talvez nem mesmo grandes professores acadêmicos deste país tenham notado o plano de Dostoievski. Certamente o sujeito tinha dívidas enormes a pagar e sem nenhum tostão utilizava a literatura para se justificar e colocar a culpa em seus credores.

- Gutierrez, você tem certeza que esse tal de Fiódor não é nosso conterrâneo?

- Não fale uma coisa dessa, Cândido! Que blasfêmia!

- Bem, talvez ele não seja desta terra, mas que se adaptaria com facilidade isso tá na cara, quer dizer tá na pena!

Novamente a gargalhada escandalosa de Cândido deixava o culto Gutierrez sem graça.

- Já pensou, Gutierrez, se todo homem que tivesse devendo os bancos desse país e não tivessem um tostão com que pagar seus credores, resolvessem liquidá-los? Aí, sim, meu amigo, isto seria um verdadeiro inferno! Esta terra está cheia de Raskolnikoves, é uma verdadeira peste! Não digamos os banqueiros, mas o homem simples que emprestara uma quantia a um sujeito qualquer. Este sem ter como pagar resolve, após algumas conjeturas, liquidar o homem simples. Isso é justiça? A crise de consciência em Raskolnikov é a única coisa que salva a obra de Dostoievski. Apesar de não acreditar na consciência de nossos compatriotas.

- Ok, Cândido. Por isso seria bom você ler a obra e não se orientar pelos meus resumos. Acredito que neste caso não fui honesto com o grande mestre Fiódor.

- É, talvez.

Já ia se despedindo, o literato desiludido, quando Cândido disse:

- Gutierrez, escuta só. Não acredito que liquidar um sujeito mau seja a solução, mas é uma ajuda, um início. O que nosso país precisa é de uma revolução dos homens de bem. Se todos os homens de bem se reunissem para julgar e punir essa malta de corruptos, talvez teríamos um país melhor. Uma verdadeira ditadura do bem!

- Ditadura do bem? Você tá ficando obcecado com essa idéia, cara. O homem é de natureza fugidia, imprevisível, não está presa às regras, do bem ou do mal. Próxima vez que vier aqui vou-lhe trazer um conto de Machado, A Igreja do Diabo. Este conto mostra isso que estou lhe falando.

- Ok, mais um conto. Sem problema, amigo. Mas continuo acreditando numa ditadura dos homens bons!

- Ok, até mais!

- Até, meu amigo!

Depois de alguns dias, Cândido sorria lembrando-se da última prosa com Gutierrez. Gostava de

Ficar ali na sala, em sua poltrona tragando seu charuto predileto e ouvindo as últimas notícias na rádio, velho hábito que herdara de seu pai.

[O deputado Luiz Teodoro foi encontrado morto em sua casa. Tudo indica que tenha sido suicídio. Fora encontrado um pequeno bilhete que dizia: “depois de tanto meditar sobre meu erro, resolvi dar cabo de minha vida, pois sou uma vergonha para a minha família e para o povo de meu país. Não poderia continuar existindo carregando essa vergonha”. O enterro será amanhã às 14 horas e o velório às 12h, na capela de Nosso Senhor do Perpétuo Socorro.]

- Bem, esse não rouba mais de ninguém.

in memorian

Santos

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 06/08/2007
Código do texto: T595364
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