A Chave

- Se eu não estivesse lá, vendo e ouvindo tudo, eu não acreditaria no que aconteceu e que mudou inteiramente nossas vidas! - disse-me Dico usando uma carga emocional nas palavras ainda muito grande embora os eventos que ele estava narrando tenham se passado já a algum tempo. E o delicioso café fumegante, bem como os croissants fresquinhos regados com geléias de morangos e laranja não estavam ajudando muito a diminuir a tensão do ar.

Dico e eu éramos amigos desde os primeiros anos de escola, numa relação de amizade que não cobrava nada de ninguém. Quando queríamos sair para uma cerveja, dar uma olhada nas garotas ou fazer algum dever escolar, estávamos ali um para o outro, bastando um chamar. Poderíamos passar um mês sem nos vermos mas, quando estávamos juntos novamente, parecia que tinha sido ontem que tínhamos nos visto pela última vez.

Quando meu pai faleceu e, pouco tempo depois também minha mãe se foi, eu me senti sozinho. Decidi tomar um rumo diferente quando percebi que estava deslocado na cidade onde nasci e sempre morei. Saí sem muito olhar para trás, apenas com um breve adeus a Dico. Vinte anos se passaram enquanto eu atravessava um doloroso casamento e vida profissional apática. Meu filho, a última vez que ouvi dele, estava tentando salvar vermes brancos da poluição numa floresta tropical que jamais tinha imaginado existir.

“Vida sem sentido” seria a melhor expressão para descrever meus sentimentos acerca de tudo o que estava se passando comigo e, aos poucos, comecei a achar que precisava encontrar âncoras que pudessem me dar segurança em alguma coisa na minha miserável vida, pois nada ao meu redor me dava alguma sensação de estabilidade. Tudo o que era de mim eu havia deixado para trás. Talvez uma visita à minha cidade pudesse me fazer ver objetos e lugares e reviver memórias perdidas que servissem de um novo ponto de partida?

Confesso que resisti bastante à idéia de voltar. O que lá poderia ter de útil já que tudo ficou perdido no passado? Minhas dificuldades eram no agora, no lugar onde estava, e eu já não tinha mais ligações havia muito tempo com minha cidade. Eu me apalpava no hoje, sentindo a carne dura das minhas angústias, tentando imaginar até onde o ontem poderia me sensibilizar e relaxar meu espírito acabrunhado.

Somente saberia se tentasse. E tentei.

Algumas partes da cidade mudaram e, com as mudanças, foi-se a casa da minha infância e juventude, substituída por um enorme edifício que não me dizia nada. Foram-se, também, as faces alegres e descontraídas das pessoas que passavam pelas ruas, travestidas por faces sem rosto e sem nenhuma emoção do que eu me lembrava. Até mesmo o ar era diferente, não por causa da poluição já evidente, mas aquele ar impregnado de cheiros doces e familiares que eu havia acostumado a sentir quando passava em frente a uma determinada casa ou loja.

Pouca coisa me chamava a atenção e estava começando a achar que todos os elos que me amarravam à vida estavam se desfazendo até que avistei um grande letreiro numa casa de comércio que dizia: "Ferragem Dico".

Era ele, tinha que ser ele!

Dico sempre foi muito habilidoso em descrever e falar sobre ferramentas, sobre suas funcionalidades, seus detalhes, medidas, precisões e utilidades, embora eu pouco tivesse visto ele usar uma. Isto era com seu pai: ele fazia maravilhas com ferramentas mas, invariavelmente, deixava-as espalhadas por toda oficina. Ele consertava carros, máquinas e aparelhos de qualquer espécie; coisas dadas como imprestáveis por outros, o pai de Dico trazia de volta para funcionar, quase como novas. Mas, a bagunça que ficava na oficina após um conserto era tarefa de Dico em pôr tudo de volta nos seus lugares, precisa e corretamente em cada gancho, em cada contorno de ferramenta que Dico mantinha com cuidado pelas paredes e armários. Tudo certinho, como se nada houvera acontecido... até o próximo conserto.

"Nada mau", pensei cá comigo. Finalmente, Dico estava onde sempre gostou...

- Foi uma comédia e uma tragédia ao mesmo tempo - continuou Dico.

- Meu pai e minha mãe estavam se aprontando para uma noite importante e, tal como era o ritual deles nestas ocasiões, ele pegaria uma pequena chave de dentro da gaveta superior do toucador, abriria uma caixinha de madeira decorada, pegaria um colar de pérolas legítimas e o colocaria no pescoço de minha mãe. Eu digo ritual porque eu podia ver o encantamento nos olhos e atos de ambos em executar os mesmos gestos nestas ocasiões. Era um gesto de galanteria por parte do meu pai e um gesto de feminilidade da minha mãe em ser assim servida por meu pai.

O tom de voz de Dico mudou de um quase sonhador para um semblante preocupado.

- Desta vez, o ritual não se completou porque, depois de pegar a chave, meu pai a engoliu junto com amendoins que ele estava comendo. Como você sabe, ele era louco por amendoins e os tinha sempre à mão em todas peças da casa.

Certamente, não a chave da nossa história, mas uma com mais de 200 anos, encontrada numa casa muito antiga no Sul da França.

Pura verdade. Eu ri discretamente porque, quando queria pedir um favor ao pai de Dico, bastava oferecer um pacote de amendoins a ele.

- Sim, eu também ri da cena mas o que se seguiu não foi nada engraçado. Meu pai, dando-se conta do acontecido, ficou imóvel com a mão ainda perto da boca, enquanto minha mãe olhava para ele muda. Tudo não durou muito tempo mas os segundos me pareceram horas. Notei que as faces da minha mãe foram ficando vermelhas, o pescoço cada vez mais tenso e os punhos se cerraram, crispados. As palavras vieram como uma onda forte chicoteando as rochas. Palavras fortes e acusações, coisas que deveriam estar represadas a muitos anos dentro dela afloraram aos borbotões. Eu jamais havia presenciado uma discussão ou uma conversa alterada entre eles. Agora, parecia que a panela de pressão havia explodido!

Dico respirou fundo e eu não me atrevi a mover um só músculo.

- Ela nos expulsou do quarto e bateu a porta com força. Só isto já era algo extraordinário porque ela jamais havia demonstrado qualquer atitude violenta antes. Estávamos chocados, com vergonha de olhar um ao outro, sem trocar uma palavra sequer. Como se tivéssemos um código de silêncio, evitávamos discutir o assunto. Nos dias seguintes, meu pai passou ansioso para "obter a chave de volta", enquanto minha mãe permanecia muda, cabisbaixa e afastada de nós - relatava Dico.

- Quando meu pai finalmente "conseguiu reaver a chave", ele a colocou no seu lugar de sempre na gaveta mas, ele me disse, que tanto a caixinha quanto a chave desapareceram pouco tempo depois. Sabíamos que o ritual havia terminado.

- Algumas semanas mais tarde, rompendo o silêncio, minha mãe gritou comigo porque eu havia estacionado o carro um pouquinho sobre a grama do jardim. Isto foi o início de cenas que se repetiram cada vez mais frequentemente até o médico da família diagnosticar minha mãe com demência progressiva. Meu pai fez de tudo, com minha ajuda, para aliviar a situação e cuidar dela. Vivemos momentos terríveis até que o coração de mamãe, normalmente não muito forte, falhou.

Sua voz se tornou cada vez mais embargada pela emoção quase a ponto de chorar.

- Meu pai ficou devastado mas resistiu, cada dia mais fraco. Anos depois, ele foi diagnosticado com Alzheimer e se tornou progressivamente desligado de mim e do seu entorno. Ele não tocava mais suas ferramentas e ficava horas a fio sentado na mesma posição olhando algo no horizonte. Aqueles foram tempos difíceis porque eu tinha que cuidar dele e da loja ao mesmo tempo. Entāo ele também partiu e... aqui estamos nós!

- E aqui estamos nós! - disse eu, como que concluindo a história.

A narrativa de Dico tocou-me profundamente. Minha vida, que eu achava ser uma procissão de maus momentos, era um oceano de felicidade em comparação e eu não poderia me imaginar na posição dele durante anos a fio cuidando dos pais.

Não tinha mais nada a fazer na cidade e parti novamente para continuar onde havia parado, com a certeza que cada um tem seus próprios trechos a percorrer. Quanto a Dico, acredito que ainda esteja entre suas estimadas ferramentas.

Milhares de cadeados de todos os tipos, cores e tamanhos que infestam monumentos e espaços públicos, colocados ali por pares enamorados que então jogam a chave fora, obrigando as autoridades a usar de muita força para promover a limpeza.
CBressan
Enviado por CBressan em 20/03/2017
Reeditado em 20/03/2017
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