O ESCRITOR

O primeiro livro que escrevi foi uma mentira.

Passeava num verão, terça-feira, por uma praça e notei que acontecia uma feira de livros antigos, dessas de quiosques, barracas e tudo mais. Segui pela entrada do parque que dá acesso à avenida, parei na primeira barraca de livros que encontrei. O livro mais caro que vi estava a dez reais. “até ai, tudo bem”, disse comigo mesmo. Outras duas pessoas pararam na mesma barraca, um casal de jovens, ele usava óculos, era alto, ela tinha cabelo curto, mas nada bonita.

Peguei o primeiro livro (não me lembro o nome), abri e folheei algumas páginas, devagar, fingindo uma leitura atenta. Esse tipo de feira permite que você abra os livros quantas vezes quiser, e os leia se quiser, e depois coloque-o de volta no lugar – se não querer – como se nada tivesse acontecido.

Depois do quarto livro que abri ali, percebi aquela barraca era apenas de escritores estrangeiros. “Será que eles separaram as barracas por gêneros?” pensei. Tomei o caminho para o centro da praça, era um grande circulo com o piso diferente do ladrilhado de todo o lugar, mas não sei de que material era feito. O centro as vezes serve de palco para algum evento local, no domingo de manhã, os idosos praticam Tai Chi Chuan ali, de graça. O instrutor é pago pela prefeitura. Agora, porém, toda a borda estava cercada de quiosques e barracas, e elas cheias de livros, livros e mais livros, de todos os tipos... gostos para todas as idades.

A próxima barraca que visitei os livros aparentavam ser todos de literatura policial, um gênero interessante. O primeiro livro que peguei era o segundo de sua fileira, capa dura, preta, apenas com o nome do autor e o titulo em letras douradas, parecendo muito a bíblia – li um pouco da orelha, me interessei bastante. Decidi levá-lo, paguei seis reais, seu preço, e me despedi da barraca. Sentei logo no primeiro banco que vi, abri o livro e li, muito rápido, as cinco primeiras páginas.

Fiquei hipnotizado. A história era incrível, envolvente, não, não somente isso, fascinante, extraordinário, fantástico, o que mais, o que mais... era o melhor livro! Sim, sem duvida, o melhor! “Mesmo que o resto acabasse por ser um lixo” pensei “aquelas cinco paginas o transformariam”, era o melhor dos começos que já li. Agora pergunte se leio muito. Não, não leio nada. Muito raramente, um jornal, mas é só.

Então tive uma ideia. Repare bem no que fiz.

Editores, em grande maioria, gostam de livros antigos, então é preciso tomar cuidado. A primeira coisa a se fazer foi mudar as palavras, o vocabulário, para uma narrativa mais moderna – acrescentei alguns palavrões e xingamentos em algumas partes – depois, a ordem dos personagens e as informações sobre suas personalidades foram invertidas. Essa parte foi difícil, tive que fazer uma segunda leitura de pesquisa, usei um caderno de anotações e a medida que os personagens iam aparecendo e eu ia anotando. No final, coloquei as folhas arrancadas uma do lado da outra, comparei algumas, adicionei algo em outras e no final troquei a ponto de não parecer meio forçado. O resultado foi satisfatório.

Em conversas entre duas pessoas, sempre adicionava uma terceira pessoa, ela participando ou não da conversa. A base do texto em si não foi mudada em nada, mesmo se fossem procurar provas de que o livro era uma cópia teriam muito trabalho, eu tinha feito um fabuloso quebra-cabeças. Como me orgulhei disso.

“A história era sobre um policial, que ia se aposentar no dia seguinte, e se depara com um assassino de prostitutas. As pistas são uma bagunça e muitas das testemunhas são mentiras, correndo pela fama, polemica ou a mando de alguém. No decorrer dos capítulos o policial descobre que todas já moraram num mesmo bairro antes e tiveram um conhecido em comum. Uma das prostitutas que consegue escapar denuncia o conhecido, ele foge e na perseguição acaba morto (quase no final do livro já). O caso é dado como encerrado e uma semana depois, nosso policial já aposentado, quando lembra do ocorrido, percebe a falta de sentido em alguns pontos. No fim ele descobre que a foi a prostituta que sobreviveu que matou as outras e camuflou seu crime, por inveja, daquelas tidas como as mais famosas da noite.”

Esse era o livro. A palavra “prostituta” foi trocada por “puta”, pra deixar o tom mais ácido da narrativa, o nome do policial também. Pensei muitas vezes se deixava o fato dele estar se aposentando, mas no final resolvi que sim. A história foi resumida ao máximo – o número de páginas no original eram 302, a minha ficou com 180 páginas – os detalhes eram breves porque eliminei muitas das enormes descrições sobre casas, cidades e ruas etc.

(Adicionei capítulos, coisa que no que li eram apenas divididos por partes espaçadas.)

Esperei três dias dar a primeira leitura. Faltava algo impactante no final. Não era preciso mudar nada, é claro, mas alguma coisa faltava, o requinte, sim, algo como isso.

“o que fazer, o que fazer...” dizia, e andava de um lado a outro pela casa toda.

Liguei a televisão. Já era de madrugada. No programa de entrevista passava um escritor famoso, que eu nunca conheci. Não sabia nada sobre ele, tampouco me interessei em saber, apenas o que ele dizia, respondendo as perguntas me prendiam a atenção. Por que? Porque ali me surgiu a ideia. Joguei seu nome na internet, procurei por seus livros que estavam disponíveis para leitura online. Eram três. Abri o primeiro e nada, fui para o segundo, mesma coisa, no terceiro encontrei o que procurava.

As linhas que faltavam, era o requinte... da humildade:

“O que escrevo não tem nenhuma pretensão de ser incrível. Não tem nenhuma pretensão de ser famoso, muito menos de que venha a ser lido.”

Apenas copiei essas linhas e dei como concluído.

Levei-o na semana seguinte a uma editora.

O livro foi um sucesso.

Deison Rafael
Enviado por Deison Rafael em 08/03/2017
Código do texto: T5934109
Classificação de conteúdo: seguro