A VIUVA

(Este conto foi inspirado no povo e nas tradições da região onde vivo.As denominações são fictícias e quaisquer semelhanças com pessoas ou fatos da vida real serão meras coincidências.
Assim,lhes convido a conhecer um dia na vida da viuva Petrowska)



O movimento no armazém da Polaca ,no  dia  de hoje , não poderia ser melhor.
Das duas portas largas de entrada por onde penduram-se alumínios,cachos de bananas e alguns cabides com peças de vestuário pode-se ver a cancha de "bocha" repleta.
Os fregueses decidem em duplas os arremessos das pesadas bolas de madeira maçiça diante de olhares fanáticos distribuidos ao longo das laterais da cancha de areia torcendo pelos seus favoritos.
"Anushka-Caixeirinha",como é chamada,incansável ,repõe as cervejas,as batidas e os martelinhos de cachaça pura que reforçam o entusiasmo da torcida.
Não param de chegar colonos e peões.Os primeiros aportam em carroças coloridas, os bancos encobertos , confortavelmente , em "pelêgos" de lã de carneiro na cor de laranja.
A grande maioria se  faz acompanhar das mulheres e filhos.
[Polonês de fibra, preserva  um  respeito sagrado aos  valores  da  família]
Os peões amarram seus bem cuidados cavalos aos troncos das araucárias e  vão-se rapidamente adentrando à venda.
No interior do estabelecimento:um alvoroço!...
Falam todos ao mesmo tempo...
Enquanto alguns são atendidos ao longo dos balcões os demais formam pequenos grupos a trocar idéias,falando de lavouras, assuntando as novidades....
Os rostos encobertos pela fumaça dos palheiros tornan-se quase irreconhecíveis.Peões acotovelam-se junto ao balcão de bebidas por onde duas atendentes não param um minuto.
Num dos cantos vendem-se roupas,tecidos,aviamentos...A claridade do sol que entra pela vidraça reluz o brilho das bijouterias que as coloninhas provam em seus pescoçinhos alvos.
Ouve-se constantemente  os comentários admirados das polaquinhas elogiando-se umas às outras:
"Nossa!!! Mas  de lindo que non  ficô!!!" 
 A viúva Petrowska,proprietária do armazem,retira debaixo do tampo de vidro do balcão a última caixinha de pó de arroz para servir à freguesa e aproveita para chamar à atenção de sua gerente o descuido em deixar acabar um produto tão "bom de venda".
Katiuska Petrowski,êsse é na verdade o seu nome. Após a morte de seu esposo há mais de dois anos,seguindo um costume polonês de atribuir à viúva o sobrenome do finado,no feminino,passou a ser chamada "Sra.Petrowska" ou "Viúva Petrowska".
É uma bela mulher.Beira os sessenta anos ,mas sua aparência não condiz com a idade que tem.Não é o que se pode definir como pessoa gorda."Cheínha" seria o termo que melhor se enquadra.
Sua rechonchudez é muito bem distribuída  em sua mediana estatura.
Tem seios fartos e belos.Intimamente  ela sabe  disso,então,faz questão de deixa-los bem visíveis nos decotes de blusas muito colantes que tem o hábito de usar.Acompanhando as variantes de seu estado de espírito,em certos dias coloca no vértice do decote uma camélia de tecido que costuma ajeitar com frequência,já conhecendo a reação da peãozada.
Está sempre de saias largas,rodadas e, vez e outra,queixando-se dos pernilongos levanta-as bem acima dos joelhos para verificar (em) em suas bem torneadas e generosas coxas os "teríveis" sinais das picadas dos insetos.
O sucesso junto ao público masculino é incontestável,mas por outro lado,é também muito querida pelas mulheres e especialmente pela criançada,público alvo de seu marketing,  à  quem  costumeiramente oferece uma balinha acompanhada de sua frase de efeito:
"Prá você,balinha de hortelã...Papai e mamãe de volta amanhã!".
É empreendedora ! Não perde a menor chance de aumentar  o faturamento. A exemplo disso,agora no galpão ao lado,um grupo de empregados promovem a faxina. Empilham-se as sacas de cereais,varre-se e encera-se o assoalho para o baile que acontecerá à noite.
Carpinteiros ajustam os últimos detalhes no pequeno palco para os músicos , improvisam balcões no botequim.Na cozinha estão bem adiantados os quitutes. Charutos de repolho,doces e guloseimas.Na fornalha rescende o cheiro dos frangos  com farofa,das cucas recheadas,das bolachas de mel... Para ser vendido durante o evento.
Tôda esta agitação provoca na viúva uma certa ansiedade. Quer atender bem a todos e diante da impossibilidade,essa limitação desperta-lhe um apetite de leoa.Começa,então,a beliscar tudo o que lhe aparece pela frente.Abre o vidro de conserva e devora uma salsicha ao molho vinagrete. Um ôvo cozido também conservado ao vinagre...Um bom dia daqui,um"Vai com Deus" dali,e mais um torresminho crocante,um gole na cachaçinha que faz a festa dos peões,uma cervejinha pra não "desfeitear" a rapaziada, e...Sem demora está corada. Sua pele lembra um lindo pêssego rosado!
Os cabelos dourados e o par de olhos oscilando de um azul profundo ao verde esmeralda,enlouqueçem os peões. Excitados,êstes, erguem brindes intermináveis sem saber a quem ou a que.
Ciente do faturamento que a esta altura é dos melhores, a viúva comemora.
Eleva o pequeno copo de canha e grita um "Vivaaa!..."
Um coro de vozes masculinas responde e ela ingere mais um golezinho. Enganam-se ,porém, os peões achando-se favoritos da bela e rica viúva.Na verdade seu coração já tem um dono. Pertence à Jenauro.
Caboclo de aparência vistosa,capataz duma fazenda nas redondezas,que coincidentemente agora acaba de cruzar ao longo da coxilha numa distância considerável da casa de comércio.Segue em seu cavalo branco,num trote não muito apressado.O brilho de suas botas se faz luzir ao sol da manhã. O chapéu,fora da cabeça,preso ao barbicacho pende-lhe às costas.
Destaca-se o vermelho do lenço sobre a camisa branca de mangas longas.
Petrowska o vislumbra  no  trecho.
Num ímpeto desata a correr.Abre ,num empurrão, a portinhola do balcão e alcança a porta. A freguesia,abismada,fica a lhe observar sem entender o que está ocorrendo.A viúva mete dois dedos boca à dentro emitindo um assobio forte que parece rasgar a campina.Jenauro ,profundo conhecedor da senha , segura  o cabresto e  pára o alazão. Atento, volta-se para o casarão de madeira.A voz de Petrowska é forte , decisiva,chega a ser quase autoritária:
_Jenauro!...Não te esqueças: o "ARASTA-PÉ" é hoje à noite.Começa às nove ,não falte!
A seguir, em voz baixa,quase sussurrada,arremata:"QUERRIDO!"
O capataz acena de longe,coloca o chapéu sobre a cabeça,e com o ego massageado,a virilidade lisongeada ,arranha a espora no animal saindo num galope ligeiro.Ouve-se pela coxilha um grito de vitória:
_IiiiiiHuuuu!!!...
Em seguida,peão e cavalo,são engolidos pelo capão de mato.

Chega a noite.
O galpão está repleto.Gaiteiros e violeiros acertam as últimas notas afinando os instrumentos.Jenauro já se faz presente.Conversa amistosamente com os demais peões e nem sequer imagina estar sendo observado pela viúva que por detrás da cortina de seu quarto na parte superior do casarão lhe vê como o mais encantador dos homens.Seu coração apaixonado pulsa mais forte. Os seios fartos apertados no vestido vermelho arfam!
Expandem o aroma sensual de "Hora Intima" generosamente distribuido em partes estratégicas de seu corpo.
Mira-se uma vez mais no espelho.A mulher que lhe sorri do outro lado é bela,cheirosa e cheia de amor.Lampeja-lhe uma vaga lembrança do falecido,um quase  sentimento de culpa...
Afinal fora  feliz com ele por tantos anos,mas...A  vida continua.Pensa  com  seus  botões.Faz o sinal da cruz.,proferindo baixinho: "Que Deus o tenha"...E que "possa eu nesta noite, ter o meu Jenauro".
No galpão, transformado agora em salão de baile, tremulam bandeirinhas coloridas.Risos e conversas vão-se misturando,os mais variados  odores incensam  os  ares  mornos  da  noite.
Petrowska,deslumbrante,se aproxima.
Fazem-lhe a corte já na porta de entrada . Um dos colonos estende-lhe a mão para que alcançe com maior facilidade o tronco de imbuia que improvisa o degrau.Écumprimentada,saudada com aplausos e os músicos a convidam então para "abrir o baile".Deverá escolher com quem dançar a primeira música.Peões e colonos fazem um círculo...Petrowska retira a camélia que traz entre os seios...Deverá bailar à frente de cada um dêles,de olhos fechados,e aos pés à quem deixar cair a flor, será êste o felizardo.
Como trata-se de um jogo de cartas marcadas,é evidente que a flor tem um destino pré estabelecido para cair.
Cai aos pés de Jenauro.
O salão ,agora,lhes pertence.O casal deslisa no chão parafinado.A melodia é chorosa.Lembra vagamente uma valsa,mas dada à pouca qualificação da orquestra,difícil é definir o rítmo executado.Logo outros pares vão se juntando e o salão é literalmente tomado pelos dançantes.
A partir daí,Petrowska e Jenauro não mais são vistos.
Manhã seguinte.
O casarão de madeira mergulha numa paz enternecedora.Tão sòmente as vozes esganiçadas das polaquinhas,ponteando as vacas,quebram o silêncio.
Petrowska levanta-se.
Bocejante,abre a janela e aspira o ar temperado ao odor  fétido do estábulo e o cheiro adoçicado das  gabirobas.
Entranhado na mata,um  sabiá rasga  no bico a canção do  acasalamento.
Reluz ao sol os telhados pela vizinhança e peões,embriagados,curam-se de ressacas esparramados sobre a grama ainda orvalhada.
Uma das polaquinhas,erguendo o balde de alumínio,grita-lhe do curral:
-"Que dia liiindo!...Lindo!!!...Lindo!!!...
Petrowska,com aquela cara de pêssego rosado e recém colhido,acena afirmativamente com a cabeça e responde em voz alta:
-E eu acordei "SORINDO!"
Volta-se para o aposento e sorri,agora com dois "érres".
O quarto está em total desalinho.Calça e camisa,jogadas num canto,botas e chapéu no outro. O vestido vermelho,amarrotado,sôbre a profusão de frascos na penteadeira.
Jenauro,de bruço,ronca,contorçe os músculos,resmunga algo incompreensível.Vira-se de lado e,roncando ainda,mastiga o esbôço de um prazeroso sorriso no canto da boca.
Petrowska,fascinada lhe observa.Então,num sussurro,diz à si mesma:
"Meu Deus!...Como sou feliz."


Joel Gomes Teixeira

Texto reeditado.
Preservando os comentários no texto  anterior:



Comentários
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02/06/2014 11:54 - Jajá de Guaraciaba
Meu caro escritor iratiense, li vagarosa e prazerosamente esse conto de rara beleza. Gostei realmente de tudo que li! O texto bem pontuado leva-nos a uma leitura agradável. Você soube concatenar as ideias no transcorrer da escrita de maneira muito inteligente. Parece que a viúva estava na minha frente pela forma perfeita com a qual você a descreveu. (Quase me apaixonei por ela, mas o medo que senti do Jenauro...rsrsrsr!). Notei também que você utiliza a ortografia usada antes dos anos setenta, o que enaltece e caracteriza a sua personalidade. Apreciei, também, muitas frases inéditas e bem colocadas, por exemplo: " Prá você, balinha de hortelã... Papai e mamãe de volta amanhã!". É um conto um pouco longo para o recanto, o que poderia desencorajar o leitor, todavia, por ser atraente, muitos chegam, recompensados, até ao fim da leitura. Obrigado por me proporcionar esse agradável entretenimento. Voltarei outras vezes. Abraço fraternal e até breve.
18/08/2012 12:27 - Luiza Helena [não autenticado]
Fascinante ! A riqueza com que vc narra os detalhes, faz com que a gente entre na cena, sinta aromas, gostos, e viva as emoções...Fantástico vc, Poeta!
18/08/2012 01:52 - Luconi [não autenticado]
Amigo vi o link lá na pág. do face e corri ler, que delicia de conto, você tem uma forma muito especial de narrar, excelente, como sempre meus parabéns beijos Luconi
02/11/2011 00:08 - chicochicao [não autenticado]
A narrativa tem um movimento singular,como se fora uma câmera de cinema registrando o movimento das cenas.Ternura e candura recheiam as personagens e ambientes.Pena que não seja em 3 dimensões...Lindo,caro escritor! Abracos.
13/04/2011 09:30 - Lair Estanislau Alves [não autenticado]
Ao ler a crônica A Viúva passou na minha cabeça os armazens no interior de Minas Gerais, tinha de tudo, entre variadas mercadorias,ferramentas para os trabalhos rurais,principalmente pendurados nas largas portas. Viajei no tempo.Parabens.
06/03/2011 06:47 - geraldinho do engenho [não autenticado]
MEU CARO AMIGO QUE BELO E ROMÂNTICO FILME ACABO DE ASSITIR VC É UM EXELENTE ROTEIRISTA, NEM SEI É ESTE O VERDADEIRO NOME SE DÁ A UM ÁS DO CINEMA, MAS VC SABE O QUE EU DIZER...MEUS APLAUSOS E MINHA ADMIRAÇÃO POR ESTA MARAVILHA COMO SEMPRE NOS PASSANDO BELAS AULAS DE LITERATURA! ABRAÇOS DE IRMÃO!
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05/03/2011 10:11 - Grace Fares
Se é releitura, parabéns por ela. Vale sempre à pena lê-la.Viuva...sonhos e ser feliz.Amém.
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02/03/2011 12:00 - Daisy zamari
Bela história.Viúvas sempre dão asas a imaginação... Obrigada pelos comentários .Espero que já tenha adquirido seus "Mensageiros dos ventos".Um abraço.
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01/03/2011 23:34 - Lilian Reinhardt
Este conto é outra peça de incomensurável beleza. Adoro-o pelo contexto de sua magia que resgata o real impregnado de lirismo.Leio e releio sempre esse encanto de prosa e temos a honra e a satisfação de have-lo publicado em nossa lanternadevagalumes.blogspot.com. com sua preciosa luz poética. É um encanto de prosa literária e de maestria de seu artífice. E com que lirismo nos alimenta a alma e nos resgata raízes. Agradecendo sempre vossa partilha, poeta da minha terra, Abraço imenso
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01/03/2011 17:36 - Maria Mineira
Um lindo conto. Parabéns !Vou ler outros textos seus . Um abraço!
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01/03/2011 14:27 - Lisyt
Uma releitura que vale a pena. Você retrata com maestria seu povo e sua região. Parabéns!Boa tarde!
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01/03/2011 12:06 -
Adorei o conto... personagens muito bem delineados e o enredo otimo! parabénsa, venha me ler tbm!
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01/03/2011 00:45 - Maria Dilma Ponte de Brito
Que bela inspiração. Adorei mesmo. Parabéns mais uma vez pelos detalhes que tanto enriquece seu texto.
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01/03/2011 00:26 - tania orsi vargas
Esta viúva acho que foi uma das melhores inspirações do poeta. Este conto eu guardo pra sempre e já li vária vezes. Joel, a tua interação ficou esplêndida. Valeu! MErece um beijo!
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28/02/2011 21:06 - Cristiano Graça
belo conto, parabéns!