ULTIMO DIA

Cheguei em casa por volta das nove da noite. O transito estava um inferno, calor também. O carro finalmente enguiçou na avenida. Quando acendi a luz da sala, minha mulher estava no sofá, seminua, com um copo de uísque – White Horse, meu favorito – nas mãos, assistindo o canal da novela mexicana. Ela adorava aquela merda toda. Enquanto eu trabalhava todo o santo dia, de domingo a domingo, ela ficava em casa, sustentando o lar, que aliás, metade era apenas para o uso dela. Meu mesmo só meus livros e discos de jazz. Demorou hoje, ela me disse. O carro quebrou, respondi, e não esperei por réplica. Subi para o banheiro, precisava de uma ducha fria.

No caminho era o quarto da minha filha. A porta estava entreaberta. Dei uma espiada de leve; estava grudada com a cara no computador, nesse veneno que são as redes sociais. Não pensei em nada útil para dizer, apenas fingi que não vi nada e fui para o banho. Os problemas e a irritação do dia desceram com a água pelo ralo. Nasci como um novo homem. Desci, fui em direção à cozinha, passando pela sala. Cristina está no computador a essa hora, disse – não aguentei. Outra vez não esperei algum comentário, queria ser aquele da ultima palavra na hora.

Esquentei a comida no microondas, tirei o suco de soja da geladeira. Não quer um pouquinho? me disse ela, quase jogando o uísque na minha cara. Apenas balancei a cabeça negativamente. Terminei de jantar, dei um beijo nela e subi para a minha biblioteca pessoal. Não abri nenhum livro, porém, sentei na poltrona, coloquei um disco do Miles Davis na vitrola e acendi um charuto. Fiquei curtindo aquela sensação momentânea, que me pareceram horas. Horas e mais horas.

Minha mulher apareceu. Nua desta vez. Vem pra cama, disse ela. Vou sim, disse. Demos os poucos passos até nosso quarto de mãos dadas. Cris já tá dormindo, ela. Sei, disse. No quarto também tirei a roupa. Trocamos carícias, beijos e abraços, mas não fizemos sexo. Ela estava nos dias. Ficamos abraçados e ela dormiu por cima do meu braço. Pegava rápido no sono. Tirei o braço devagar e levantei. Era meia noite.

Desci as escadas, ainda nu, e peguei a maleta na cômoda, perto da porta e a garrafa de uísque. Subi para a biblioteca, sentei e abri a maleta finalmente. Tirei dois envelopes. Um deles da clínica oncologista do centro da cidade, o outro, um de cor parda, sem nada escrito. Conferi a folha dentro, não precisei ler tudo, apenas a primeira palavra em negrito “TESTAMENTO”. Coloquei os envelopes em cima da vitrola.

Relaxei na poltrona mais uma vez e respirava mais firme. Muitos minutos depois dei um gole no uísque e joguei a maleta no meu colo de novo. Peguei o revolver recém comprado, carreguei a única bala e o coloquei em baixo do queixo. Apenas relaxei novamente o máximo que pude e fechei os olhos. Apertei o gatilho e fim.

Deison Rafael
Enviado por Deison Rafael em 25/02/2017
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