MENINO PASSARINHO

“ – Hei, Guri, venha cá! “ Bradou o pai, cortando a corda de fumo em um pires. O menino, uns 6 anos, franzino, branquela, olhos vivos e sorridente, imediatamente se “achegou” e postou-se aos pés do pai, seu ídolo inconteste.

O Homem foi picando o fumo em um pires rústico e perguntou, olhando firme para o Menino:

“ – Me diga, Chico, o que é que você vai querer ser, quando crescer? ”

De bate pronto o Menino respondeu:

“ – Passarinho!!!!”

O Homem parou de ajeitar o fumo picado na palha e esbravejou:

“ – Passarinho? Como? Deixa de ser besta, Menino, passarinho não é gente. Eu disse qual a profissão que você vai adotar... “ E o Homem continuou discursando, como se estivesse em um palco imenso, diante de numerosas plateias.

“ - ... Quando você for do tamanho dos seus irmãos mais velhos e tiver que trabalhar para pagar seus próprios estudos !”

Assustado, como sempre ficava quando ouvia o vozeirão do pai, o Menino balbuciou:

“ - Eu quero ser igual aos pássaros, poder voar de galho em galho, ter a liberdade de olhar o mundo de cima, de pairar mais alto que todas as criaturas... “

O Homem, paramentado com as roupas tradicionais de gaúcho da fronteira, olhou fixamente para o Menino, pegou a cuia de chimarrão e sorveu mais um gole. Teatralmente, empurrou a aba do chapéu para cima, descortinando a precoce calvície e disparou:

“ - Ô panaca, aprenda a se expressar corretamente: Você está querendo dizer que quer ser aviador? Então vai ter que se alistar na Força Aérea Brasileira. ”

O Menino pensou “- É melhor concordar...” e acenou afirmativamente, fazendo com as mãos gestos que pretendiam ser semelhantes aos de aviões realizando acrobacias. Neste momento o menino “viajou”, relembrando as reportagens e as fotos de aviões, aviadores e acrobacias já publicadas inúmeras vezes pela revista “O CRUZEIRO”, na década de 50, da qual seu pai era assinante e leitor assíduo.

Para uma criança de 6 anos, o Menino era muito esperto e maduro. Já sabia ler (escrevia pouco) antes mesmo de entrar no curso Primário, incentivado pelo pai, leitor voraz, contabilista autoditada e filósofo incompreendido. O pai era um escriturário mediano, viúvo em já em segundas núpcias. A morte prematura da primeira esposa, ao nascer o quarto filho, o empurrou para uma depressão não aceita e não reconhecida para os padrões da década de 50. O poeta Augusto dos Anjos se tornou seu “patrono” e o Homem curtia condignamente sua condição de vítima do destino cruel. Vestia o figurino da época e fazia de conta não enxergar ao seu redor jovens sonhadoras e balzaquianas conservadas, além de viúvas e desgarradas de todas as espécies. A todas dedicava atenção e teatrais gestos de respeito, como convinha aos personagens de Machado de Assis, José de Alencar, Cassimiro de Abreu, Mario de Andrade, Graciliano Ramos e muitos, muitos outros. Mas casou-se novamente e mais filhos vieram, um a cada um ano e meio.

Obviamente nada disso sabia nosso Menino precoce, fruto do segundo casamento. O caçula era muito atento, curioso e já lia com desenvoltura o volumoso “História da Civilizações”, edição Melhoramentos de 1946, da lavra do pranteado Oliveira Lima.

Naquele momento, o Menino apenas respondera com simplicidade. Ser um Menino Passarinho era um desejo normal para qualquer criança com 6 anos de idade, metaforicamente. Anormal era essa criança saber ler com desenvoltura antes de frequentar aulas no curso primário. Mas ao que tudo indica ninguém percebeu isso. Até hoje ninguém sabe, ninguém percebeu. Segue incógnito o Menino de outrora, o idoso de hoje.

“Escrever é preciso, navegar na Web também...”

(J. M. Jardim).

Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 18/01/2017
Reeditado em 20/01/2022
Código do texto: T5885325
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.