Vendedor de Velas


Dia de Finados na rua Floriano Peixoto era sempre agitado nos idos da década de 80. Aliás, tudo o que acontecia no cemitério de Santa Rita, que ocupa quase uma lateral inteira da rua, envolvia de corpo e alma os moradores dali, especialmente a molecada.

Num certo dia, surgiu a ideia de se organizarem em duplas e irem oferecer seus serviços de lavadores de túmulos aos visitantes. Iam eles munidos de duas esponjas, panos, sabão e três latas com água que ficavam suspensas num cabo de vassoura, com cada garoto segurando uma das extremidades. E assim iam caminhando pelo cemitério, em busca de fregueses.

Ao final do dia, com os trocados no bolso, iam todos ao supermercado do bairro e lá gastavam tudo em doces. Era uma farra.

Um menino mais velho do que a maioria dos garotos da rua, contudo, em vez de esponja e sabão, munia-se de tinta e pincel e ia trabalhar sozinho como pintor de túmulos. Os moleques comentavam que ele ganhava bem mais do que a maioria dos lavadores juntos, pois cobrava mais pelo serviço e não precisava dividir com ninguém o seu lucro.

Atento aos fatos, atinei-me que pintar túmulos exigia certa habilidade que eu não tinha, mas que talvez houvesse outro tipo de atividade em que eu pudesse me dar bem.

Observei, então, os vendedores de coroas de flores, os vendedores de água e refrigerantes, salgadinhos e doces, até que, finalmente, foquei nos vendedores de velas e então veio o estalo: “no ano que vem, vou ser vendedor de velas”.

Então, a uns três meses do dia de finados seguinte, falei com meu pai sobre o meu plano.

- É negócio garantido, pai. Todo mundo compra velas nesse dia. Lucro certo!

Meu pai hesitou um pouco, mas logo percebeu que era uma boa ideia. Comprometeu-se a providenciar a mercadoria.

Ansioso, aguardei o passar dos dias, semanas, meses, e nada do velho chegar com as velas. Confiante em sua promessa, aguardei apreensivo até a semana do feriado, mas como não havia nenhum sinal das velas, resolvi tirar satisfações acerca daquele atraso preocupante.

Foi então que descobri que meu pai havia se esquecido de providenciar as velas. Não querendo dar o braço a torcer, garantiu-me que estava tudo sob controle e que a mercadoria estaria em minhas mãos no dia seguinte.

Então, na véspera da tão esperada data, chega em casa meu pai com uma caixa de papelão que parecia um tanto pesada, cheinha de maços de vela. A cara aborrecida por cima da caixa sinalizou-me que algo não havia ido bem, e logo me revelou:

- Procurei em todas as fábricas, mas os estoques já haviam sido todos vendidos. Por isso, tive que comprar tudo na loja do Seu Arnaldo, por OITENTA centavos cada!!!
Impaciente lançou-me uma ordem aborrecida:

- TEM QUE VENDER NO MÍNIMO POR UM CRUZEIRO, RAPAIZIN!!! ENTENDEU? UM CRUZEIRO, RAPAIZIN!!!
Assim recebi a mercadoria em minhas mãos. A sensação já não era tanta de satisfação. Havia se transformado em tensão pura.

No dia seguinte, lá estava eu, cedinho, em frente ao portão de entrada do cemitério.

Ao meu lado, um monte de adultos vendedores de velas, flores, águas, etc. Meus concorrentes olhavam-me com certo ar de desconfiança, ou desdém mesmo.

Logo que os primeiros clientes começaram a chegar, começaram também as gritarias. Era um querendo gritar mais alto do que o outro para ganhar os fregueses. Parecia até que quem tivesse o grito mais alto venderia mais. Se apenas isso fosse, certamente que eu já estaria eu em grande desvantagem.

E assim começou a brincadeira:

- VELAS DA BOA É AQUI!!! O MAÇO POR APENAS OITENTA CENTAVOS!!! Gritou um grandão que estava à minha direita.

Logo retrucou o outro à minha esquerda:

- AQUI TEM VELA DA MELHOR! SE LEVAR DOIS MAÇOS, SAI POR SETENTA CENTAVOS CADA UMA!!! NÃO PERCA A PROMOÇÃO, FREGUÊS, DUAS POR SETENTA CADA!!!

Senti um frio na barriga. Enquanto os dois concorrentes ao lado começavam a disputa na base dos setenta e oitenta centavos, na minha cabeça reverberava aquela voz brava do meu pai: “UM CRUZEIRO, RAPAIZIN, UM CRUZEIRO!!!”.

Tentei fingir que aquilo não abalaria o meu emocional e ousei os primeiros gritos, que nem de longe perfuraram a barreira de som da gritaria ao redor, exceto por aquele agudo típico da voz de um menino de 10 anos:

- Olha a vela! Olha a vela!!!

Alguns potenciais fregueses se aproximaram. Pareciam encantados, ou comovidos, talvez, com a cena daquele menininho trabalhador.

- Que bonitinho! Quanto é a vela menininho? – Perguntou uma senhora.

- É um cruzeiro, dona, da boa. Vai levar uma? - respondi, tentando passar um ar de confiança.

Mas aí, aquele “marvado” do concorrente ao lado, sem nenhuma pena e desprovido de qualquer "sentimento cristão", gritou bem mais alto e ainda mais oferecido do que antes:

- AQUI, MINHA SENHORA, VELA POR APENAS OITENTA CENTAVOS. SE LEVAR DUAS, SAI POR SETENTA CADA. APROVEITE A PROMOÇÃO!!!

Ah! Que raiva! A minha quase primeira freguesa olhou-me com decepção, esperando uma contra resposta, uma reação, talvez. Mas a voz do meu pai parecia ressoar ainda mais contundente dentro da minha cabeça: “UM CRUZEIRO, RAPAIZIM, UM CRUZEIRO!!!”.

Com aquela expressão de reprovação, a quase freguesa falou:

- Menininho, por que a sua vela é a mais cara de todas?

Confesso que pensei em dizer algo profundamente técnico que me assegurasse alguma honra, como “a minha vela dura mais, senhora...” ou “brilha mais, veja o material...”, mas a verdade é que ela era a mesmíssima da do concorrente. Não havia qualquer diferença, exceto o preço.

Balancei os ombros e disse:

- Não sei. Meu pai disse que era pra vender por um cruzeiro.

Ao lado, o desnaturado do concorrente continuava a gritar sem parar, ainda mais motivado, como quem estivesse prestes a bater um pênalti:

- OLHA A VELA DA BOA! BAIXOU O PREÇO! APENAS SETENTA CENTAVOS CADA MAÇO!!! APENAS SETENTA !!!

Odioso era ver aqueles rostos desfazendo-se da admiração inicial e se convertendo em desconfiança em minha direção.

Após várias horas ali de inquestionável tortura, ainda consegui vender alguns poucos maços de vela durante os intervalos em que os vendedores ao lado esvaziavam suas caixas e iam correndo buscar mais para vender.
Voltei para casa com a caixa ainda quase cheia de maços de vela.

Para recompensar aquele dia penoso, peguei os poucos tostões das vendas que fiz e fui ao supermercado. Gastei tudo com doces e guloseimas.

Já à noitinha, vi meu pai quase ter um “troço” quando viu aquela caixa abarrotada de velas.

- O que é isso, RAPAIZIN??? Por que não vendeu as velas???

Com os olhos arregalados e a cara provavelmente amarelada, respondi:

- Porque tinham muitos vendedores de vela, e todos vendiam a setenta ou oitenta centavos. Só eu vendia por um cruzeiro, conforme o senhor mandou.

- Mas então por que não vendeu por setenta também, seu bocó? Pelo menos ia diminuir o meu prejuízo. Olha agora o prejuízo que eu vou ter!!!

Confesso que não havia pensado na possibilidade de vender por menos de um cruzeiro para diminuir o prejuízo dele por duas razões: trabalhar de graça? e aquela voz na minha cabeça ressoando o tempo todo “UM CRUZEIRO, RAPAIZIN! UM CRUZEIRO!!!”.

Com o passar dos dias, meu pai foi se resignando com o ocorrido e acabou largando aquelas velas ali na caixa, que passaram a virar aviõezinhos de fogo nas minhas mãos e de meus irmãos por todo o ano, até que se acabaram definitivamente.

Na verdade, talvez não foram somente as velas que tenham se acabado naquele ano. Depois disso, nunca mais tive muita afeição pelo comércio. Até trabalhei em alguns, mas não era com gosto.

Hoje, sei que não vendo nem sorvete no agreste nordestino, cobertor na Patagônia ou viola em Goiás, mas sou afeiçoado aos estudos e à leitura, e a única voz que ressoa na minha cabeça é de histórias como essa que eu gostaria de contar e de escrever.