A história de Segredo

Havia, pois, uma alma quarada pelo tempo, daquelas leves e meigas, destronada de um tempo que não foi seu. Falava nas entrelinhas tortas da vida dos amores e desamores já vividos, aceitos e não aceitos. Indagava-se nos dias mais tensos e recolhia-se nos dias mais difíceis em que vivia. O sol por certo desbotou-o tanto que imaginava ter perdido o som de sua voz.

Machuca-se por pouco e mal sabia criticar o que lhe incomodava tanto os olhos. De mistério bobo e quase que inerte ao tempo que corria, esfregava-se nas emoções como quem quisesse se coçar. Imbuído de tanta sensibilidade, escorriam-lhe lágrimas pelo mundo no qual estava apenas por enfeite. Delicadas mãos! Quão delicadas eram as mãos de Segredo! Erguidas eram a voz do corpo entregue e sofrente, quando estendidas eram os toques que gostaria de dar, e, em posição de prece, pedia pra Deus que lhe retornassem o equilíbrio. Os pés bem finos, bem cuidados e talvez, firmes, perambulavam seus passos sob a terra inconstante do conhecimento.

Segredo, afrontoso e ao mesmo tempo esbranquiçado feito uma pena, dispunha seu coração para além da alma lançada no vento do existir. Quara-se! Quara-se por anos a fio, onde um pensamento que vai e um pensamento que vem lhe retorna ao sol de sua entrega. Mal sabia diferenciar o presente do passado, o passado do futuro e o futuro do presente.

Tamanha sensibilidade, a olhar estrelas e tentar acompanhar cada projeção dos brilhos, passava horas e mais horas na janela, pedindo que o firmamento as baixassem com força total. Entre um piscar e outro, fazia-se à cama, clamando por desistência de tal apreciação. Apenas fazia, e, insistentemente, condenava-lhe a olhar o céu escuro clareado pelas estrelas. Reiterava-se do passado quarado, reiterava-se do presente quarando e nada do futuro pós-quarado enxergar. Inteligente e de pensamento muito lento, esquecia-se dos minutos antecedentes recentes com facilidade e relembrava do passado longínquo do primeiro sol, do primeiro vento e da primeira chuva.

Em posição fetal apertava os olhos e via um mundo todo a ruir, como pedras grandes e grotescas diante de suas costas. Segredo era a perfeita criação na forma de passarinho, o errado acerto do que nem era pra ter sido.

O coração de Segredo era de porcelana e a alma de vidro lhe davam toda e qualquer incerteza, nas respostas que buscava. Quarado pelo tempo "dava-se a entender" de que das certezas não tinha clareza, mas de que suas incertezas vinham cunhadas de delicadezas mil, das quais movia-se dia após dia, noite após noite, dentro da frieza do seu existir. Não sabia nada do início, desconhecia o meio e não conseguia enxergar o fim. Sabia apenas do tempo e do seu quarar que, imaginava, sem medo da escuridão das suas noites, apenas ser um ponto bem pequeno no meio do céu.

Do coração de porcelana e da alma de vidro saíam faíscas coloridas, compondo assim corações e um arco-íris dentro do vazio ao qual estava entregue. Não conseguia somar um mais um nem dois mais dois, mas sabia entender o cantar dos pássaros que o visitavam desde o tempo do primeiro sol. Numa manhã escolhida, um canário amarelo entrou em sua vida e, inteligentemente, jogou um pano sobre o canário, dando-lhe água e depois liberando-o ao mundo.

Dentro de Segredo, totalmente inacabado, o vento assoprava e já sabia voar pequenas distâncias! Sumiu dentro das goiabeiras e foi, para o vento que era totalmente seu, naquela manhã de novembro. Segredo sempre existiu mesmo quarado pelo tempo e massacrado pelo barulho das muitas espingardas dos homens.

Vive por aí, dentro de uma mata qualquer, observando seu quarar, e quem sabe, vivendo, não se sabe ao certo. A última lembrança visível foi o pequeno voo de uns cinco metros, sentido norte, nada mais que isto. O amarelo dera lugar ao branco fosco na vida de Segredo que, provavelmente estava realizando seu primeiro voo.

Daniel Cezário
Enviado por Daniel Cezário em 27/12/2016
Reeditado em 27/12/2016
Código do texto: T5864228
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