Síndrome de Van Gogh

Queria não poder lembrar. Afastar-me deste acervo gigante que tenho e poder viver do lapso do instante. De que me importa o que passou? Dele só colho as sensações do que se foi, juntadas ao meu processo imaginativo do que poderia ter sido. Olho para o meu filho e penso quão bonito foi o parto dele – se dessa lembrança abstraio o sentimento de ser mãe, lembro-me da dor terrível do momento de seu nascimento, que rezo a Deus nunca mais ter o privilégio da concepção. Há tanta coisa que gostaria de me afastar, para não ter que lembrar que sou aquilo que não gostaria de ser. Lembranças são ótimas se não temos de lidar com o passado. A covardia, de fato, é mais torturante do que qualquer soldado americano no Afeganistão.

Minha vida percorreu caminhos tão diferentes: as flores que vi, as pessoas com quem tive, vontades que me absorveram, momentos e sensações. Tudo aquilo que me aconteceu, em certa medida, foi tudo aquilo que, de maneira nenhuma, eu desejei ter ou viver. Olho hoje para minha história com o filtro da covardia. Ter dito o não na hora certa, ter saído trinta minutos mais cedo de casa, ter respirado e contado até dez. Esta sou eu: o acumulo dos erros cometidos.

E agora, no início do fim da minha vida, quero mudar. Quero sair da minha casa, do meu emprego, desta vida sufocante. Quero seguir o ideal, mas eu sou tão covarde. Estou neste ponto de ônibus há quinze minutos, observando a vida passar, enquanto carrego os legumes do jantar. Não quero fazer isso amanhã, mas como mudo? Não quero ser igual esta senhora do meu lado, moribunda pelo tempo, olhando para o neto. Sou covarde, porque noto que a liberdade que tanto desejo consome tudo aquilo que tenho. Mas se detesto o que tenho, por que o medo?

Quero ser aquilo que sou. Ser. Não como um verbo substantivado, mas um substantivo verbal. Ser agente da minha vida. Pela primeira vez, sinto o impulso de ser ativa. Decidir o que quero fazer, passando até mesmo pelo legume. Quero me pintar. Quero ter a potência de arrancar a minha própria orelha. Quero tirar de mim toda a fonte de imperfeição: eu inteira. Porém, o ônibus parou. A decisão entre fazer o jantar e ser quem eu quero ser, passa pela minha covardia. Pego o ônibus, portanto, carregando em mim a potência de ser quem-quero-ser e sendo quem-sou.

Estéfano Bento
Enviado por Estéfano Bento em 03/12/2016
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