Dois Brasileiros em Moscou

A Chegada...

Quando o Boeing da British Airways pousou no aeroporto de “Sheremetyevo” em Moscou, eram vinte para as quatro da tarde, de uma quarta-feira, no início de 2003. A maioria dos passageiros era de cidadãos russos retornando de compromissos profissionais em países europeus. Mas havia a bordo daquele voo dois brasileiros, João Luiz e Olga Maria, que como os demais viajantes não eram turistas. O casal estava se mudando de um apartamento na Barra da Tijuca, de frente para o mar, para outro com vista para o “Kremlin”.

Eles sabiam que viajar na segunda quinzena de janeiro não era uma boa opção, pois sairiam de casa no auge do verão carioca e chegariam à Moscou, onde residiriam por um bom tempo, em pleno inverno russo, o mesmo que havia derrotado Napoleão e Hitler. Mas a escolha da data de saída do Brasil não lhes pertencia. Apesar da expectativa do frio na chegada, João e Olga estavam impressionados com as primeiras imagens que viam pela janela do avião. Era uma noite densa sem lua. Os holofotes do aeroporto iluminavam a neve, presente em todas as direções, criando assim a ilusão de que o avião havia pousado em um mar branco. Um cenário monocromático, nenhuma cor além da branca. Alguns painéis, com letreiros digitais, informavam a temperatura de vinte e seis graus negativos.

— Querida, por favor, confirma no seu relógio a hora local. O meu indica quinze e cinquenta. — Perguntou João ainda sentado na poltrona ao lado da esposa.

Olga, no assento junto à janela, admirando a “paisagem antártica” respondeu: — É isso mesmo. Você não entendeu quando o comissário informou a hora e a temperatura local? — João, você precisa melhorar o seu russo. — Disse a esposa com um leve sorriso no rosto.

Nesta narrativa, que ora se inicia, o leitor será presenteado com um mundo curioso e exótico de acontecimentos, marcantes ou triviais, que circundaram o cotidiano da vida deste casal que decide aceitar o desafio de morar e trabalhar na Rússia, um país que, dentre centenas de características, pode se destacar a de marcar a descontinuidade entre o Ocidente e o Oriente.

Sem ocupar muito o tempo e contando com a paciência de todos, será narrado agora uma parte desta história que antecedeu a chegada dos dois brasileiros à Moscou.

Sete Meses Antes...

João estava apreensivo, pois sabia que naquela tarde nublada de junho, o Diretor Presidente da Aidas Alimentos S.A, uma empresa multinacional na qual trabalhava há trinta anos, decidiria o posto no exterior para o qual ele seria indicado para chefiar. O murmurinho de seus colegas e também das secretárias executivas davam conta que seria o escritório de Lisboa.

Lógico que Olga, uma incentivadora da carreira do marido, por vários motivos, estava acompanhando este assunto, e acreditava que em breve teria a oportunidade de residir em Portugal, país de origens de seus pais. Inclusive já havia realizado contato com alguns primos portugueses que residiam em Almada, município pertencente ao Distrito de Setúbal.

Por volta das dezessete horas daquela tarde, em uma rápida reunião, o nosso protagonista recebeu a notícia de que não iria para Lisboa, seria o chefe de um novo escritório que ele mesmo ajudaria a implantar em Moscou ou em Kaliningrado . João que estava apreensivo ficou apavorado. Naquele instante, só sabia que as duas cidades ficavam na Rússia ou na extinta União Soviética. Nada mais conseguia lembrar, nem o idioma falado em Kaliningrado. Mais apavorado ficou quando, regressando à sua sala de trabalho, recebeu o recado que sua esposa havia telefonado. Ela também estava inquieta, queria saber o resultado da reunião. Mas ele decidiu não retornar a ligação, despediu-se dos colegas e rumou pra casa. Preferiu dar a noticia pessoalmente à esposa.

Enquanto dirigia de Botafogo, onde trabalhava, para Barra da Tijuca, bairro em que residia, ele não parava de pensar no assunto. Teria que conversar com Olga e responder ao Diretor da Aidas se concordava ou não em ir chefiar o novo escritório. A resposta teria que ser dada até a próxima segunda-feira. Ele e a esposa teriam apenas o final de semana para decidirem. E para isso precisavam buscar o máximo de informações na internet. Vez por outra, ele repetia para si mesmo: “Rússia, Império Russo ou Império Soviético, qualquer um destes conceitos, me deixam com certo medo e também curioso”.

Quando João abriu a porta do apartamento, Olga, que ouviu o barulho da chave, caminhando em direção ao esposo perguntou:

— O que houve? Por que não retornou a minha ligação? E a reunião?

O marido, que ainda estava um tanto perplexo e assustado com a notícia, iniciou a conversa com a esposa deixando claro que o posto indicado não era Lisboa, mas que eles não eram obrigados a aceitar o convite da empresa para saírem do Brasil. Para surpresa de João, Olga, depois do susto inicial e diversas perguntas, manteve certa tranquilidade e disse que juntos eles decidiriam.

Tarde da noite daquele mesmo dia, uma sexta-feira de junho, os dois, marido e esposa, sentados diante do notebook, que estava em cima da mesa de café na varanda do apartamento, conversavam e pesquisavam sobre as cidades que poderiam ou não morar. Era a primeira oportunidade que tinham de morar no exterior. Em termos familiares, não havia praticamente óbices. Olga era professora aposentada. Os dois filhos já eram adultos e formados. A mãe de Olga poderia cuidar da Princesa, uma cadelinha poodle, que estava na família há quase vinte anos. O filho mais novo ficaria morando no apartamento com apoio da avó materna. Então, a decisão estaria somente condicionada aos prós e contras de se morar e trabalhar em um país com características cem por cento diferentes das do Brasil. Aquela reunião informal na varanda se repetiu várias vezes durante o final de semana. E como eles haviam combinado que antes do anoitecer de domingo, cada um daria sua opinião.

João, olhando para o Sol, que naquele momento tocava o horizonte da praia da Barra, disse:

— Querida, seguindo a tradição da nossa cultura de “primeiro as damas”, qual é a sua opinião? Aceitamos ou não?

Os dois concordaram em aceitar o desafio. Iriam morar em um país considerado extremamente difícil para qualquer cidadão não russo.

No decorrer dos meses que antecederam a data planejada para saída do Brasil, João foi informado por seu chefe que o novo escritório seria instalado em Moscou e que a Aidas cuidaria diretamente do aluguel das salas. O casal iniciou uma verdadeira imersão em pesquisas e leituras relacionadas à cultura e ao cotidiano da vida na Rússia, e também sobre os aspectos psicossociais, políticos, econômicos e históricos do país. João, um amante da literatura, deu preferência às obras de Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Vladimir Nabokov, Alexandre Soljenitsin, Ivan Turguêniev e Vassili Grosman, deixando os autores britânicos, até então os seus preferidos, em um local mais afastado na sua estante de livros.

No início de julho daquele ano, eles já estavam matriculados em um curso intensivo da língua russa. O marido havia ajustado o horário de expediente na empresa, e os dois estudavam juntos das sete da manhã ao meio dia, de segunda à sexta-feira, na Urca em uma das raras escolas de línguas no Rio que ensinava o idioma criado por São Cirilo no meado dos anos oitocentos. Olga, que já tinha aptidão natural em aprender idiomas estrangeiros, deslanchou no russo. Para ajudar o marido, ela criou diversos ambientes no apartamento com murais, quadros com o alfabeto cirílico e objetos etiquetados com os nomes em russo.

Sempre que tinham um tempo sobrando, eles seguiam para Rua Professor Marques, cinquenta, no Leblon, endereço do Consulado Geral da Rússia no Rio. Lá, além de resolverem os problemas burocráticos de vistos, conheceram e ficaram amigos do funcionário Dimitre Stanislav, um russo que estava trabalhando e morando no Brasil há quinze anos. Stanislav deu diversas dicas de bairros onde morar, agências imobiliárias para aluguel de apartamento. Recomendou que as roupas para o inverno russo fossem compradas lá, porque as vendidas no Brasil não atenderiam às condições de frio extremo e baixa umidade de Moscou, tendo inclusive indicado duas lojas na Avenida Nova Arbat, próxima à estação do metrô de Arbatskaya.

O casal rapidamente se adaptou à rotina de estudos, de trabalho e visitas ao consulado no Leblon. E a imersão na cultura russa deixou de ser uma obrigação, os dois ficaram encantados com os diversos caminhos que os levariam à Eterna Rússia.

Assim, João Luiz e Olga Maria se preparam para enfrentar o grande desafio. Dele, talvez, o maior de sua carreira profissional e o dela de acompanhar o marido em uma longa viagem para uma cidade muito distante, tendo que se afastar da mãe, uma senhora de quase noventa anos e dos filhos.

Na data planejada, os dois, com um aperto no coração por se afastarem das pessoas queridas, mas de certo modo felizes pela oportunidade que teriam de conhecer o país dos czares, do Teatro Bolshoi, da primeira revolução comunista, de Vladimir Lenin, de Josef Stalin, de Mikhail Gorbachev e dos longos e gelados invernos, embarcaram no Galeão com destino à Moscou com a missão de representarem a Aidas Alimentos, que buscava ampliar suas exportações de frango e de linguiça para aquela região.

Na Rússia...

Naquela tarde, que devido à escuridão já era noite, após algumas dificuldades no setor de imigração e de passaportes, os dois brasileiros conseguiram entrar na Federação Russa. Mesmo usando agasalhos e botas, sabiam que não estavam com trajes adequados ao frio e à quantidade de neve congelada que avistavam do hall do aeroporto.

Eles tinham planejado comprar as roupas de frio na manhã do dia seguinte à chegada, conforme havia sugerido Stanislav, o amigo russo do consulado no Leblon.

Depois de darem duas voltas nos largos corredores do aeroporto à procura de uma cabine de táxi e nada encontrarem, João, olhando para aquele cenário antártico e calçando as luvas, disse:

— Fique aqui olhando as malas. Eu vou lá fora localizar o ponto de táxi.

— Atenção, muito cuidado com o frio e o gelo. Não esqueça o que disse Stanislav sobre a facilidade com que as pessoas, quando não usando os calçados adequados, escorregam. — Recomendou Olga.

Cerca de quinze minutos depois, o marido, com uma tremedeira incontrolável, retornou. E sentando em uma das malas ao lado da esposa, falou em um tom preocupado:

— É difícil de acreditar, mas aqui não há serviço regular de táxi como no resto do mundo.

— Tem certeza? Você obteve essa informação em russo ou inglês? — Questionou Olga.

— Estamos no aeroporto internacional de uma grande capital. Se aqui não tem táxi, onde terá?

— Acho que não expliquei direito. Acabei de conversar com um dos comissários do nosso voo que encontrei junto à porta de saída.

— Querida, a União Soviética foi dissolvida em 1991, terminando em tese o comunismo. Mas até hoje, doze anos depois, ainda funciona o sistema antigo do transporte solidário. Basta estender o braço na rua que qualquer carro pode parar para transportar o passageiro. Aí, você negocia o local e o preço. Mas, às vezes, o motorista só aceita o cliente se o destino estiver no seu caminho.

— Devido à nossa bagagem, quatro malas enormes, o comissário recomendou que utilizássemos o serviço de transfer que existe aqui no aeroporto. — Concluiu João.

E eles foram de Van para o Rossiya Hotel , localizado em um quarteirão adjacente à Praça Vermelha.

Após quase uma hora em pé na recepção preenchendo formulários intermináveis, tirando cópias de documentos que precisavam ser carimbados num guichê afastado do balcão principal, os dois brasileiros, levando suas malas gigantescas, pois não havia carregador, iniciaram a busca do quarto 1245. O hotel tinha três mil quartos distribuídos em longos corredores com diversos pontos de entradas e saídas.

— Finalmente um pouco de privacidade. — disse Olga largando as malas e se jogando na cama.

— Também estou cansado. Estamos viajando há quase vinte e quatro horas. — João respondeu enquanto fechava a porta do quarto.

— Querida, sugiro um banho bem quente, — continuou João, agora entrando e inspecionando o banheiro.

— Ih! Só tem uma toalha pendurada. Vou telefonar para recepção. Você lembra a palavra em russo?

— Que palavra? Toalha?

— Sim, respondeu o marido.

Depois de quase um minuto, Olga respondeu que também não lembrava. Seria necessário abrir uma das malas e procurar outro dicionário, porque o da mochila havia sumido, talvez tivesse ficado no assento do avião.

— Vou ligar e falar em russo e inglês. — Decidiu o esposo.

Não conseguindo fazer-se entender, pois os funcionários do hotel não conheciam uma única palavra em inglês ou em qualquer outro idioma que não fosse o russo, João, que por preguiça ou cansaço não quis abrir as outras malas para procurar o dicionário, rumou à recepção com a toalha na mão e mostrando-a ao atendente pediu outra igual, resolvendo o pequeno obstáculo por mímica.

No dia seguinte, logo após o café e com os mapas do metrô e da cidade nas mãos, eles foram às primeiras compras. Ficaram encantados com o comércio e a beleza da nova e da velha Arbat. Apesar do frio intenso e das montanhas de neve congelada, havia diversos artistas de rua nas galerias e nas estações do metrô. Um russo, talvez da região do Cáucaso, sósia do Michael Jackson, cantava Thriller com uma excelente pronuncia em inglês, atraindo muitos transeuntes.

Os nossos dois personagens, por terem chegado à Moscou, lendo em cirílico e falando o básico da língua russa, naquele primeiro dia não tiveram dificuldades de comprar as roupas e os agasalhos. Já saíram da loja à moda russa, inclusive usando shapka. Aproveitaram que estavam no centro da cidade e foram conhecer a agência imobiliária sugerida por Stanislav.

Durante as primeiras caminhadas no centro e viagens no metrô, João e Olga constataram o que o amigo do Consulado no Rio não cansava de repetir: “vocês precisam aprender russo, é fundamental saber ler em cirílico porque em Moscou não há informações, letreiros, avisos, nada escrito no alfabeto latino. E será muito difícil se comunicarem em outra língua com as pessoas da cidade”.

— Querido, estou com fome. Estamos andando desde cedo. Daqui a pouco deve escurecer. Vamos comer alguma coisa e voltar ao hotel. Temos que abrir as malas para nos organizarmos. O que você acha? — Perguntou a esposa

— Acho que você está corretíssima, também estou cansado e faminto.

Por volta das quinze horas, antes de pegarem o metrô, eles almoçaram no KFC. Não quiseram arriscar um restaurante local logo no primeiro dia.

A volta não foi tranquila como a ida. O metrô estava superlotado. Era tanta gente que Olga ficou apavorada quando se aproximando da plataforma de embarque não conseguia pisar no chão e quase foi arrastada pela multidão.

Mas o susto maior daquele primeiro dia na cidade foi quando chegaram ao hotel. Após várias tentativas, João não conseguiu abrir a porta do quarto.

— Me deixa tentar. — disse Olga pegando a chave magnética da mão do esposo.

De nada adiantou, a porta continuou trancada.

— Acho que desmagnetizou. Vamos à recepção que eles resolvem. Você me ajuda no russo. — Disse o marido, olhando e dando a mão à esposa.

E os dois seguiram para o hall central do hotel.

De repente, quando estavam chegando à recepção, Olga, apontando para uma ampla sala, falou em voz alta e com expressão de surpresa:

— Oh! Veja. São as nossas malas.

Eles entraram na sala, que ficava ao lado da recepção, e certificaram que eram as suas bagagens.

Olhando um para o outro, com aquela expressão de quem não estavam entendendo nada, disseram em voz alta e ao mesmo tempo: “Por que nos expulsaram do quarto”?

Eles tiveram a resposta depois de quase quarenta minutos conversando e gesticulando com o gerente.

— Você entendeu a explicação, João? — Questionou a esposa, falando baixo e com certo desânimo.

— Sim. Acho que sim. No “check in”, eles nos cobraram uma diária. Eu paguei com cash, lembra? Dei três notas de cem dólares e recebi uma de cinquenta de troco. Por mim estava tudo ok. Mas agora o Mikhail, o rapaz que conversou conosco, não sei se ele é o gerente, explicou que temos que pagar as diárias antes das treze horas de cada dia. E disse também que independente da origem dos hóspedes, mesmo os russos, não havendo o pagamento até às três da tarde, o quarto é preparado para uma nova ocupação. Simples, não?

— Sim. Muito simples. Se me contassem, não acreditaria que algo desse tipo pudesse acontecer. E não é papo, eles cumprem o procedimento. Mikhail deixou claro que um senhor ucraniano, que havia chegado de Kiev e não tinha reserva, já estava utilizando a suíte 1245. E que nós por enquanto estávamos sem quarto, mas ele disse que poderia nos acomodar num apartamento menor, de fundos.

— Claro, querida, foi isso que aconteceu. — Comentou o marido preenchendo os formulários para o novo quarto.

— Hoje, na ida ao centro da cidade, conseguimos nos comunicar em russo e andar no metrô sem grandes dificuldades. Então, vamos reduzir o nosso período no hotel. Não precisamos dos cinco dias para adaptação à cidade. João, o que você acha de irmos amanhã à imobiliária para ver os apartamentos? — Propôs a esposa quando eles acabavam de entrar no quarto 2754.

— Ótima ideia. Faremos isso, Olga.

O importante seria a escolha do bairro, que não deveria ficar muito distante da Avenida Tverskaya, próximo ao Teatro Bolshoi, onde seria instalado o escritório da Aidas, porque, conforme havia dito Stanislav, os apartamentos recomendados aos estrangeiros eram praticamente todos iguais, tinham sido reformados para servir de moradia aos funcionários das delegações diplomáticas e representações comerciais do ocidente quando do término da União Soviética.

Logo na primeira visita, a esposa fez a seguinte pergunta ao corretor, Liev Davidovich, que os acompanhava:

— Liev, por que as portas dos banheiros abrem para sala e os três quartos estão afastados e separados pela cozinha?

— Senhora Olga, compreendo que para os padrões ocidentais fica difícil aceitar esta arquitetura. Mas é fácil explicar. A reforma promovida nos imóveis destinados às famílias estrangeiras consistiu apenas em juntar três ou quatro apartamentos antigos de cinquenta ou sessenta metros quadros, retirando somente as paredes de separação. Mas se o casal desejar, já existe e a nossa empresa dispõe de unidades novas de duzentos metros quadrados no padrão europeu. — Respondeu Davidovich, enquanto mostrava por gestos que as janelas tinham vidros duplos. — E ele concluiu — Reparem que este apartamento e os outros deste bloco possuem uma bela vista da cidade. Mas atenção, durante o inverno não se deve abrir as janelas, por causa do frio. Elas ficam vedadas com fitas adesivas.

— Davidovich, você disse que há apartamentos novos disponíveis, qual é a faixa de preço do aluguel? — Perguntou João se aproximando da esposa.

— Quase o dobro do valor destes antigos que estamos visitando. Muda da faixa de dois mil dólares para quatro mil por mês.

João olhou para esposa e a esposa olhou para o marido, e responderam ao mesmo tempo. — Vamos escolher um desses antigos que visitamos.

Olga não tinha gostado de nenhum dos cinco imóveis que visitaram. Não que ela fosse exigente, mas além da péssima distribuição dos cômodos, havia também a questão dos vasos sanitários.

Diferenças culturais existem e nem sempre nos adaptamos aos costumes locais. Não sei se o leitor já pensou em como são os banheiros pelo mundo. Se tiver curiosidade faça uma rápida pesquisa no Google e conheça alguns vasos sanitários asiáticos. Os que Olga não gostou eram realmente horríveis.

— Liev, eu e minha esposa gostaríamos de ficar com o segundo apartamento que visitamos. Aquele com uma pequena varanda de onde, mesmo que um pouco distante, pode se avistar o Kremlin. Mas, como você comentou que pequenas obras poderiam ser realizadas, queremos trocar os sanitários. Instalar vasos ocidentais, ok?

— É o imóvel da Krutitsiky, perto do metrô de Proletarskaya. Faremos a obra nos banheiros, senhor João Luiz, desde que as despesas possam ser incluídas no preço do aluguel. — Respondeu o corretor.

Em menos de duas semanas depois de chegarem à Moscou, os dois brasileiros estavam morando num apartamento com varanda de frente para o Kremlin. Quando comparado com o imóvel do Rio, o que mais interferia na vida do casal era a diferença das temperaturas nas varandas. Antes chegava a quarenta graus célsius, agora a menos trinta.

Depois de resolver o problema de moradia, João deu início ao seu trabalho. Comprou os móveis para mobiliar o escritório de representação. A sala tinha sido alugada, via uma corretora internacional, pelo Departamento de Administração da matriz da Aidas no Brasil. Providenciou os serviços básicos como telefonia e internet. Contratou um motorista e uma secretária, ambos eram cidadãos russos fluentes em português.

E, aos poucos, o casal foi se adaptando e aprendendo a viver na Rússia pós-soviética. O escritório foi operacionalizado sem muita demora, lógico depois de muita burocracia e dezenas de requerimentos carimbados, o que certamente ajudou na tramitação da papelada. João, seguindo a recomendação de Stanislav, de que na Rússia os requerimentos carimbados eram autorizados com prioridade, e também constatando que até os cardápios dos restaurantes eram carimbados, encomendou cinco com a chancela da Aidas, tanto no alfabeto latino quanto no cirílico.

Ainda naquele primeiro inverno, João e Olga voltaram a estudar russo. Mesmo falando e entendendo razoavelmente a língua das pessoas, e já estando seis meses no bairro, não tinham oportunidades de conversar com os vizinhos. Os russos culturalmente são bastante diferentes dos ocidentais. Ao mesmo tempo, podem ser frios e emotivos, melancólicos e modernos, cultos e rudimentares. Comportam-se e agem com antipatia e falta de gentileza, mascarando as suas virtudes. Para descobrir pessoas formidáveis, que podem se tornar amigos verdadeiros, é preciso transpor essa barreira inicial. Assim aconteceu com os nossos protagonistas e o motorista da Aidas.

Era uma sexta-feira, a temperatura estava em torno de zero grau, a neve caía como chuva de verão no Rio, Olga estava sentada na sala de trabalho do marido, aguardando-o para almoçar. Sergei Slava, que acabava de retornar ao escritório da Aidas, avistando o casal de brasileiros, murmurou consigo mesmo: “Hoje os convidarei para o almoço. Eles estão aqui há seis meses, e só os vejo conversarem entre si”.

Sergei Slava havia sido indicado por alguém da Embaixada do Brasil em Moscou para concorrer à vaga de motorista no escritório da Aidas Alimentos. Na entrevista, João gostou do modo reservado como ele se comportou e também de saber que Slava tinha morado em Salvador, onde havia trabalhado numa oficina mecânica por três anos.

— Senhor João Luiz, terminei a entrega de todos os documentos nas filiais da rede de mercado Sete Continentes. — Disse o motorista.

— Obrigado, Slava, até segunda. Bom fim de semana — Disse o brasileiro levantando e caminhando em direção à porta.

— Senhor!

— Pois não, Slava.

— Gostaria de convidá-los para conhecerem um restaurante típico russo. Não fica longe daqui, apenas duas estações de metrô.

— Eu adoraria. — Intercedeu Olga se aproximando dos dois. E depois de um instante de reflexão, ela disse — Sergei, eu e meu marido adoraríamos.

Os três foram almoçar no “Mu-Mu” da Arbat e a partir daquele dia Slava tornou-se amigo do casal, e sempre que podia os levava para conhecer locais interessantes em Moscou e cidades vizinhas.

Sabendo da paixão de João por livros, após o almoço Slava os levou para conhecerem a Dom Kniga, a maior livraria de Moscou.

— Para nós russos, a leitura é um hábito que chega ser quase um ato compulsivo. — Disse o motorista caminhando na calçada, um pouco à frente do casal, em direção à livraria.

— Sim, eu constato isso diariamente no metrô. É praticamente impossível ver uma pessoa que não esteja com um livro. Na maioria das vezes que faço uma rápida contagem mental, o resultado não muda, ou seja, de cada dez pessoas nove estão lendo.

— Correto, isso explica porque o mercado editorial aqui é o terceiro maior de todos os países. E o russo é o segundo idioma científico mais utilizado do mundo. — Diz o motorista.

Ao entrarem na Dom Kniga, os dois brasileiros ficaram deslumbrados com o tamanho das diversas salas abarrotadas de estantes e com a quantidade de jovens, adultos e idosos consultando e comprando livros.

Slava os levou na seção de autores estrangeiros e observando as diversas estantes, ele perguntou ao casal:

— Vocês sabem qual o autor brasileiro mais lido aqui no meu país?

— Jorge Amado, respondeu Olga imediatamente sem pensar.

— Não, senhora Olga Maria. É o Paulo Coelho.

Seguindo uma dica de Sergei Slava, João comprou dois livros que segundo o amigo o ajudaria a entender como pensam e vivem os russos atuais que, apesar da vida moderna do início do século vinte e um, ainda mantinham os modos e costumes de seus antepassados. Slava gostava de dizer que o Império, os Czares, a União Soviética, o comunismo não mais existiam. Tudo havia mudado ou muda na Rússia, exceto a cabeça do povo.

— Claro que você leu esses clássicos que me recomendou — Diz o brasileiro retirando os livros do pacote e mostrando ao amigo. — Você pode fazer um breve comentário sobre os dois romances?

— Sim, posso. Nikolai Gógol, ainda que tenha nascido na Ucrânia, é considerado um escritor russo, pois morou na Rússia e todas as suas obras foram escritas na nossa língua. “Almas Mortas”, que o senhor acabou de comprar, é um marco da literatura mundial. Quase duzentos anos depois de sua primeira publicação, o tema ainda é atualíssimo: a corrupção nos órgãos públicos, como se torna medíocre o ser humano frente aos desejos de poder, a ganância, as mentiras, as fofocas e tudo o que há de pior na natureza humana está fielmente retratado com certo toque de humor, que faz com que a leitura seja leve, agradável e até um pouco divertida. Gógol retrata a situação da Rússia na época, quando o povo vivia em regime de servidão e os bens de um proprietário eram avaliados pela quantidade de "almas", como eram chamados os servos naquela época.

E Slava continuou falando enquanto saíam da livraria e caminhavam na calçada em direção à estação do metrô:

— O segundo livro, foi escrito na década de 1920, mas somente foi autorizado a sua publicação em 1987, quase no final da era comunista. “Coração de Cão” é uma brilhante sátira à sociedade da então embrionária URSS. Mikhaíl Bulgákov consegue aliar o drama à comédia num romance rico em simbolismos e típicas estratégias de fuga à censura.

Quando eles estavam em frente ao Il Pátio, um restaurante italiano, Olga sugeriu que entrassem para um café ou chá, pois já estavam no frio há mais de dez minutos. Os painéis luminosos nas calçadas indicavam uma temperatura de menos dezesseis graus.

Os três entraram no restaurante. Mais confortáveis e acomodados em uma mesa junto à janela, continuaram conversando sobre literatura e o cotidiano da vida na Rússia.

— O livro de Bulgákov os ajudará a compreender como vive hoje a maioria dos moscovitas em seus minúsculos apartamentos e às vezes ainda comunitários, pois em “Coração de Cão”, o autor retrata como o povo soviético conduzia sua vida privada. Que tipo de cotidiano era possível nas comunas abarrotadas de gente, onde um quarto era dividido por uma família inteira, e por vezes até por mais de uma. O que as pessoas realmente sentiam e pensavam. E como evitar que as conversas fossem ouvidas no cômodo ao lado. — Disse Slava pausadamente em um ótimo português.

— Se tivermos uma oportunidade, gostaríamos de conhecer um apartamento desses da era comunista. Entender como vivem as pessoas nesses imóveis comunitários. — Disse João em russo.

— Antes de ir para a Bahia, no final de 1991, minha mãe e eu morávamos aqui próximo do centro em um cômodo de nove metros quadrados que ela tinha posse. Ainda tenho amigos e um primo que residem naquela quadra de apartamento, podemos um dia visitá-los. O que acham?

Olga, olhando para o esposo que fazia o sinal de positivo com o polegar da mão direita, disse — Ótimo. Aceitamos o convite. Avise-nos quando iremos.

— E atualmente onde você reside, Slava?

— O apartamento que minha mãe tinha tomado posse, quando da mudança do regime socialista para o capitalista, eu “herdei-o” depois que ela faleceu, ou seja, tornei-me o dono daquele imóvel. Mesmo não tendo, até hoje, aqui na Rússia o conceito claro de propriedade privada, como no seu país, vendi-o e comprei outro um pouco maior, com vinte e cinco metros quadrados, na periferia de Moscou, onde moro com a minha esposa. — Explicou o motorista, que atendendo ao pedido do casal, passou a falar em russo.

Quando terminaram o chá, João, olhando para um painel digital, ao lado do balcão, que indicava as horas e as temperaturas interna e externa, falou:

— Já são quase sete horas da noite, que tal uma pizza? Olga e eu gostamos de comer neste restaurante. E você, Slava?

— Por mim tudo bem, a minha esposa só sai da faculdade às dez horas.

E eles continuaram conversando na língua local sobre as dificuldades e facilidades de se viver naquele país. Olga e João sabiam que o motorista, como quase todos os cidadãos daquela cidade, tinha nível superior de escolaridade, ele era graduado em matemática. O que o casal estava admirado era com a cultura do motorista.

Slava, por conhecer as histórias de sua mãe e também por ter vivido no regime soviético, gostava de comparar o antes com o agora. Sobre moradia, ele não se esqueceu de destacar que, graças ao regime anterior, no seu país não havia sem tetos, não por terem morrido de frio, mas porque, mal ou bem, todos tinham sua moradia. E boa parte dos moscovitas ainda possuía suas datchas .

Diferente do Brasil, o motorista continuou falando, agora sobre educação...

— Aqui na Rússia 99% das pessoas são alfabetizadas, e as que vivem em Moscou possuem graduação. Tatiana que, na parte da manhã, faz limpeza do escritório, é formada em medicina e trabalha à noite no atendimento de emergência da Policlínica da Cidade. A educação também foi um legado comunista.

Quando a pizza chegou, Slava perguntou se alguém o acompanharia em uma cerveja. Os dois aceitaram.

— Por favor, traga três Bálticas. — Pediu o motorista olhando à garçonete que colocava na mesa uma pizza grande de queijo com cogumelos.

— Vocês já provaram a cerveja russa? A Báltica é fabricada em São Petersburgo e atualmente é a mais consumida em todo o país.

João diz:

— Ótimo, provaremos a cerveja russa. Realmente, aqui em Moscou é muito comum ver as pessoas nas ruas, nos parques e até no metrô com uma ou duas garrafas de Báltica na mão e bebendo. Também reparei muitos adolescentes, não aparentando mais do que quatorze ou quinze anos, em grupos nos jardins ou uniformizados nas calçadas das escolas bebendo cerveja. Nunca tinha visto isso em qualquer outro lugar do mundo. Como essas “crianças” compram ou têm acesso à cerveja?

— Aqui no meu país, a cerveja não é considerada “bebida alcoólica”. A legislação atual a enquadra como produto alimentício, então qualquer pessoa, sem restrição de idade, pode comprar e consumir cerveja como se fosse refrigerante. Esse tratamento legal é o responsável direto por levar anualmente seis mil jovens entre sete e dezessete anos ao Centro Médico da Criança, em Moscou, para tratamento de alcoolismo. Cerca de quinhentas mil pessoas morrem todos os anos por causas ligadas ao álcool. É difícil encontrar uma única família que não tenha histórias trágicas para contar. A Rússia está na lista dos países em que a população mais consome bebida alcoólica.

E, mostrando a garrafa de cerveja, Slava diz:

— Neste momento, não estamos consumindo álcool. Perante a legislação não há diferença desta “Báltica” para uma “Coca Zero”.

— Isso explica o comportamento de algumas pessoas nas ruas que, por várias vezes, eu e Olga presenciamos e achávamos que havia algo errado. É bastante comum ver motoristas dirigindo e “bebendo”. Por mais de uma vez, vi operários em andaimes limpando os vidros de prédios altos e consumindo cerveja como se fosse água. — Disse João terminando de comer seu último pedaço de pizza.

— Mas, mesmo contrariando os interesses de alguns setores empresariais e de uma boa parte da população, o projeto de lei que reconhece a cerveja como bebida alcoólica, depois de anos engavetado na Duma , está ganhando força entre os políticos. — Explicou o motorista, verificando as horas em seu relógio de pulso.

Olga, que já tinha terminado a pizza, olhando para o painel digital, diz:

— Querido, vai dar nove e trinta. Slava tem um compromisso importante com a esposa. E nós amanhã cedo iremos de carro conhecer o Parque de Izmailov. Vamos então.

No trajeto até o metrô, os três amigos foram conversando sobre o passeio programado para o sábado. Na realidade, os dois brasileiros mais ouviam do que falavam. O motorista, ainda falando em russo, mas traduzindo algumas palavras para o português, comentava:

— Na tradicional feira de Izmailov, os senhores terão uma noção da dimensão que é a diversidade cultural da Rússia, que configura como um dos países de maior variedade étnica. Nós russos respondemos por cerca de oitenta por cento do total dos habitantes. O restante é composto por aproximadamente cem grupos étnicos distintos. Lá, na feira, há diversas barracas e lojas onde vocês poderão conhecer ou comprar relíquias soviéticas verdadeiras, tais como medalhas, gorros, trajes militares, pôsteres com mensagens socialistas, ícones , tapetes e bordados do Azerbaijão ou do Tadjiquistão, casacos de couro ou de pele, além de um dos símbolos máximo do meu país, que com certeza já conhecem, as matrioshkas. Pela beleza do parque, sugiro conhecerem Izmailov no inverno e no verão.

No dia seguinte, o casal visitou a famosa feira e os dois ficaram encantados com o artesanato, com os pintores e suas obras, com os antiquários, com a beleza dos jarros e samovares , com os compradores e os vendedores que vinham de regiões distantes da Rússia.

Eles passaram a visitar com certa frequência Izmailov, localizada num bairro não muito distante de Moscou, não só para comprarem artesanatos, mas principalmente para conversarem com as pessoas. Lá, João e Olga aperfeiçoaram o seu aprendizado da língua russa.

Dia a dia, a sensação de estranheza diante do inusitado da paisagem russa foi diminuindo para o casal. A vida era calma, tudo funcionava. Eles tinham o que havia de melhor em termos de cultura ao alcance das mãos. A Rússia, apesar de todas as dificuldades, costuma se tornar uma paixão aos cidadãos ocidentais que lá trabalham e moram. E isso aconteceu com os dois brasileiros.

Para diminuir a saudade e de certo modo continuarem participando da vida dos filhos, eles criaram uma rotina de se falarem por vídeo conferência no Skype aos sábados, nove da noite em Moscou e três da tarde no Rio.

Olga e João trocaram as caminhadas na praia e os passeios de bike por visitas aos museus, aos monastérios, às galerias de arte. Ele passou a praticar snowboarding e ela se divertia com patins in-line.

Na primeira semana de maio daquele ano, a neve congelada começou a derreter e pela primeira vez o casal conseguiu chegar à varanda do apartamento.

Eles curtiam as mudanças diárias na cidade com a chegada, mesmo que atrasada, da nova estação. Com a primavera, vieram as tulipas coloridas que encantavam Olga. Desaparece a paisagem bicolor do preto das roupas e o branco da neve e surgem as demais cores.

A mudança de Moscou foi concretizada no verão, que apesar de curto é quente para os padrões dos russos. A cidade tornou-se um pouco mais alegre e descontraída. As pessoas, principalmente as mulheres, passavam a utilizar pouca roupa. Na hora do almoço, os parques e jardins às margens do Rio Moscou, que há pouco estava congelado, pareciam verdadeiras “praias” com homens e mulheres seminus tomando banho de sol.

Quando o outono chegou, os brasileiros apreciavam os tons amarelado e avermelhado das largas e longas avenidas. As árvores, para se protegerem do frio que se aproximava, dispensavam suas folhas e ficavam com os galhos secos, reduzindo ao máximo seu gasto de energia. Olga adorava tirar fotos nas alamedas que, repletas de folhas caídas, pareciam que estavam cobertas por tapetes.

João e Olga perceberam como as estações do ano alteram o modo de se viver na Rússia, até o humor das pessoas era afetado. Mas eles constataram também que, como no Rio o calor predomina a maior parte do ano, o mesmo acontece com o frio em Moscou, o cenário branco permanece por sete ou oito meses.

E rapidamente o frio voltou. Na primeira semana de novembro, a neve já ocupava os telhados, as ruas, as calçadas, os parques, toda a cidade.

As baixas temperaturas e a escuridão contribuíam para o comportamento atípico do povo. Eles caminham com passos pesados, usam muitas roupas e preferem a cor preta. Com os semblantes sempre fechados transmitem tristeza nos ambientes. No inverno, em muitas cidades, a claridade do dia dura menos de cinco ou seis horas.

Mas Olga estava animada com os preparativos para as festas do fim de ano. Os dois filhos chegariam à Moscou para uma visita de trinta dias. A família teria pela primeira vez um natal, em sua própria casa, com o verdadeiro boneco de neve.

E tudo aconteceu como eles esperavam. Os quatro curtiram um natal na neve e um ano novo longe dos fogos da praia de Copacabana, mas em um local inesquecível: na Praça Vermelha, ao lado de milhares de russos, sob um frio de menos dezessete graus, e com uma vista fabulosa do Kremlin e da Catedral de São Basílio, uma das igrejas ortodoxas mais bonitas de toda a Rússia, erguida entre 1555 e 1561, sob a ordem do Czar Ivã IV, conhecido como “o Terrível”, que, segundo a história contada, quando a catedral ficou pronta mandou cegar o arquiteto para evitar que ele repetisse o projeto em outro lugar do mundo.

Naquele primeiro período de férias no país dos Czares, os dois brasileiros e os filhos fizeram muitos passeios e visitas. Quando viajaram à São Petersburgo ficaram maravilhados com o Palácio de Catarina, também conhecido como Palácio de Verão, onde está a famosa “Sala Âmbar”, que na realidade é uma réplica, porque como todos sabemos a original está desaparecida desde a Segunda Guerra Mundial, quando foi roubada pelas tropas da Alemanha Nazista que invadiram o norte da Rússia; com o Palácio de Inverno, construído às margens do Rio Neva, e que serviu de residência dos Czares e suas famílias, atualmente abriga o Museu do Hermitage, o qual acolhe uma das maiores coleções de arte no mundo com mais de três milhões de peças; com o Palácio de Peterhof e seus jardins, construído sob as ordens do Czar Pedro, o Grande, e por vezes chamado de "Versailles Russo", dado a sua “semelhança proposital” com o palácio francês.

Em Moscou, dias antes dos filhos retornarem ao Brasil, João, apesar do rigoroso inverno do mês de janeiro, com as temperaturas chegando a menos trinta e sete graus, insistiu em visitar o Museu do Parque da Vitória.

— Querido, Vamos deixar a visita ao Museu da Vitória para quando os garotos retornarem no meio do ano. Janeiro é muito frio e no Parque há muitos percursos ao ar livre. — Disse a esposa recolhendo os pratos da mesa após o jantar.

— Visitaremos somente as galerias internas. Sei que teremos que caminhar no frio entre alguns setores, mas usaremos os trajes e botas russas. Vamos até lá. Se ficar muito desconfortável, retornamos para o carro. — João Insistiu.

Enquanto Olga recolhia a louça da mesa, os três continuaram sentados conversando sobre a visita que fariam no dia seguinte. O Pai, que já havia visitado aquele museu por duas vezes, falava como se fosse um professor russo.

— A Segunda Guerra Mundial é denominada pelos russos como a Grande Guerra Patriótica, pois para este povo foi um evento de proporções catastróficas no qual toda a população civil se envolveu na defesa de sua nação. Só para vocês terem uma ideia das proporções da destruição, em solo russo foram arrasados cerca de 70 mil vilarejos e aproximadamente 1.700 cidades de pequeno porte e pode-se dizer que as perdas materiais foram insignificantes se comparadas às perdas humanas. O número de russos mortos no período é calculado em mais de 20 milhões, sendo que a maioria de civis não combatentes. Este número supera a soma de mortandade de todos os outros países envolvidos no conflito. Lá no museu veremos, no hall de entrada, uma corrente presa ao longo do teto como se fosse um forro com 25 milhões de elos, e cada elo representa um russo morto na guerra. Há também no meio da praça principal do Parque um obelisco de 141,8 metros de altura, e cada 10 centímetros corresponde a um dia da guerra. Os dioramas com as batalhas são fantásticos. A cena que reconstrói o cerco de Leningrado é especialmente comovente. Vocês lembram a nossa conversa sobre esse episódio da guerra, quando estávamos no trem a caminho de São Petersburgo? A cidade foi cercada por tropas nazistas durante 900 dias com bombardeios constantes. Eles cortaram o abastecimento de alimentos, combustível e energia elétrica deixando as pessoas morrerem de frio e de fome. Na ordem de operação do alto comando alemão, que tem uma cópia no museu em São Petersburgo, o texto é claro: “não fazer prisioneiros em Leningrado”. Somente no auge do inverno, os russos conseguiram, por uma via criada pelo congelamento do lago Ladoga, realizar dois ou três abastecimentos de víveres e retirar algumas crianças e mulheres da cidade. A população tentava levar uma vida minimamente normal com uma ração alimentar que chegou a menos de 400 calorias diárias, mas morria muitas vezes a caminho de enterrar seus cadáveres em meio à neve e inanição. O cerco causou a morte de um milhão de civis. Também segundo a história contada duas atividades não foram interrompidas: a escola e o circo.

No dia seguinte, a visita ao museu aconteceu quase como organizada por João, senão fosse o congelamento dos lóbulos das orelhas do filho mais novo, que deixou Olga preocupada a ponto de interromper o passeio e rapidamente voltar com toda a família para o carro. Ela sabia que o congelamento das extremidades do corpo, conhecida como Doença de Raynaud , poderia ter consequências graves. Mas o episódio não passou de um pequeno susto. No carro o marido ligou o aquecimento e a esposa com um cachecol massageou as orelhas do filho que lentamente foram voltando ao normal.

Em janeiro de 2004, após quase um mês de passeios e aventuras na neve, os filhos voltaram ao Brasil. O Casal, em um jantar simples, comemorou um ano de Rússia e o sucesso da Aidas. O país vinha crescendo economicamente cerca de sete por cento ao ano devido à exportação de petróleo e gás, commodities que estavam com preços altos no mercado mundial. Isso facilitou muito o trabalho de João que, em menos de um ano, conseguiu abastecer as principais redes de supermercados na Federação Russa com linguiça e frangos congelados da marca Aidas.

E os “dois brasileiros em Moscou” continuaram no cotidiano do trabalho, dos estudos da língua slava oriental e vivendo o além do dia a dia. O casal lançou-se no fascinante mundo real da Rússia, a vivida pelas pessoas locais, e não pelos estrangeiros e diplomatas.

Passaram-se cinco anos...

João e Olga conheciam bem a cidade e não tinham problemas com o idioma, mas viver em Moscou não era muito fácil. Era praticamente impossível planejar o dia seguinte ou encontrar um padrão para responder as demandas cotidianas.

Os cinco longos invernos russos, os dias curtos e cinza, a saudade dos parentes e do Brasil começaram a pesar na rotina dos dois brasileiros. Há cinco anos não visitavam o Brasil. Nas férias, eles optaram por conhecer os países da Ásia e não voltaram às praias do Rio.

Sem dificuldades e com certa rapidez, a Aidas, atendendo ao pedido de João Luiz, tomou todas as providências para substituí-lo em Moscou e repatriá-lo junto com a esposa.

No Rio...

Quando o Boeing da British Airways pousou no aeroporto do Galeão, eram quinze para as dez da manhã, de uma terça-feira, no início de 2008. A maioria dos passageiros era de cidadãos europeus chegando ao Rio de férias. Mas havia a bordo daquele voo dois brasileiros, João Luiz e Olga Maria, que diferentes dos demais viajantes não eram turistas. O casal estava se mudando de um apartamento com vista para o “Kremlin” para outro na Barra da Tijuca, de frente para o mar.

Nas primeiras semanas de readaptação à vida no Rio, dentre algumas dificuldades cotidianas, uma das que mais interferia naquele recomeço era a diferença das temperaturas nas varandas. Antes chegava a menos trinta graus célsius, agora a mais de quarenta.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 19/11/2016
Reeditado em 17/10/2017
Código do texto: T5828088
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