Senhora

Cedo a encontra descendo a Rua Manoel, enquanto inicia seu dia, indo à padaria na esquina da mesma rua com a Doutor Sales. Já ela, fazia sua terceira viagem, em idas e vindas: ora para catar papelão, ora garrafa pet, ora latinhas de alumínio. Junta todo esse material para vender ao senhor Gustavo, homem que trabalha com recicláveis e ferro velho. Faz tudo bem depressa, para que no momento exato da abertura do hortifrúti, já esteja com o carrinho estacionado bem de frente, aguardando os funcionários arrumarem os produtos que chegaram na madrugada. O dono do estabelecimento, bom homem, separa tudo que não serve para comercialização por danos estéticos, e doa-os à humilde senhora. Ela, esbanja pura felicidade ao sair com o carrinho cheio de : verduras, legumes e frutas, que garantirão o almoço e janta naquele dia.

Avista-a longe, empurrando vagarosamente seu veículo de trabalho, aproximando-se cada vez mais. Como sempre, cabeça baixa, com os queixos quase encostando no peito com demasiada modéstia. Raramente a vê olhando pra frente, somente quando precisa cruzar alguma rua, levanta a cabeça para olhar os dois lados, fora isso, está sempre com o pescoço encurvado, cabisbaixo. Atitude de quem se acha inferior ao restante da população, como se sua presença fosse um incômodo, e que as pessoas estivessem concedendo o espaço para que ela passe. Compara o cenário, com a sala de estar da casa grande, onde os donos ao encerrarem o chá da tarde servidos com biscoitos à visita, chamam a criada para recolher o tabuleiro com os utensílios, e ela, precisa passar entre a visita e os patrões, timidamente, buscando fazer no menor tempo possível a tarefa.

Quando chega mais próximo, mas do outro lado da rua, chama sua atenção.

-Bom dia!

-Bom dia, senhor! Responde-o de maneira desconcertada.

Era esse o pronome utilizado sempre que tentava falar algo com ela, e isso o incomodava. Não se sentia senhor de nada, queria que ela o visse igualmente, como apenas o rapaz que mora na mesma rua que a dela. Pra falar verdade, sentia-se inferior diante de tanta força e coragem daquela mulher. Não conteve o impulso, atravessou a rua, chamando-a novamente, e disse-lha:

-Preciso falar algo que está entalado há dias em minha garganta. A senhora é a dona desta avenida, és a única e verdadeira senhora daqui. Quando todos ainda dormem, as rodas de seu velho carrinho já percorrem esse chão de asfalto irregular. Bem cedo, enquanto a sombra da ausência solar ainda impera, o que se ouve nesta quadra é o som gerado pelo eixo das rodas sem manutenção de sua carrocinha decrépita, que há tempos não recebem a mínima camada de óleo. Depois, Quando os primeiros raios surgem, convertendo o mundo em dia, a senhora já está na labuta diária com esse peculiar sorriso de simpatia.

Sabe, existem heróis anônimos entre nós, esses circulam quase sempre despercebidos para a maioria da população, mas a senhora eu vejo, e reconheço a grande mulher que és. Mesmo com toda dificuldade: seja física pelas pernas cansadas que já não respondem tão prontamente a tantas idas e vindas, ou financeira que passas, o sorriso continua em sua face.

És uma mulher cheia de amor, cuja doçura esbofeteia a cara dessa gente hipócrita, e preconceituosa. Chamam-na de irmã, com olhos cheios de piedosa espiritualidade quando vêm ao seu portão convidá-la a ir aos locais de culto que frequentam. Mas, quando sob o sol se encontra, vestida com os andrajos que põe para trabalho, desdobrando-se para de alguma maneira ter o que comer no dia, é você por você apenas.Pessoas por aí, choram por artistas distantes, aplaudem , juram amor. Já os meus aplausos, hoje, são pra senhora: Heroína anônima, representação plena do dom de ser mãe, que mostra a essa gente como é ser forte como uma mulher.

John Canere
Enviado por John Canere em 04/11/2016
Reeditado em 30/08/2019
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