Testando a paciência...

Vila do Sossego!

Manhã normal como todas as manhãs. Sai de casa cedo, com o pensamento já no trabalho, fecha o portão enquanto o motor do carro aquece de vez.

Minutos depois sente a máquina ratear. Reduz a marcha, controla o acelerador, mas falha continua e o carro para de vez. Vira a chave repetidas vezes, o motor não atende. Sai do veículo, abre o capô recebendo no rosto uma bafejada de ar quente, olha aqui, mexe ali, dá a partida... Examina os cabos de vela, limpa o distribuidor, ajusta o carburador, parece estar tudo em ordem.

O sol da manhã vai esquentando aos poucos, olha para o relógio com certa impaciência, ainda bem que não saíra atrasado. Verifica o giglê, confere o filtro de combustível, dá a partida e nada acontece, pensa ser o cabo da bateria, decidido, desce do carro tendo antes o cuidado de tirar a chave da ignição. Puxa o cabo do polo positivo, que mostra está bem firme, mexe no negativo, tudo preso no lugar, pensa em outra possibilidades, lembra do cabo da bobina, e ao tocá-la sente na mão a alta temperatura queimar-lhe a pele, suspira pensando ter encontrado o problema, a envolve com uma flanela umedecida com a água do reservatório do pára brisa, espera esfriar para só após dá nova partida.

Ver os minutos passar. Parado na rua, imagina as possíveis causas da pane. Não entendia muito de carro, da prova de “máquina” feita ao tirar a habilitação muitos anos antes, nada mais se lembrava.

O que tinha na mente sobre motor de carro era uma ou outra palavra perdida, ouvida em comerciais ou na boca do povo, tipo “pino da granpola”, “rebimboca da parafuseta” ...

Passa um rapaz e oferece ajuda. Deve ser problema de junta, afirma após uma examinada rápida, saindo logo de cena.

Lembra que outro dia trocara a coifa da junta mocinética, mas isto era na roda, nada a ver com o problema...

Algum tempo depois fecha a cara ao lembrar a que ele se referiu: Não, seu carro não estava ainda a ponto de “juntar tudo e jogar fora”...

Parado em frente a uma garagem, teve que empurrar um pouco para que uma senhora pudesse sair. Não entende porque as mulheres precisam de tanto espaço para uma simples manobra, ele teria tirado de letra. Mesmo com o capô e portas abertas, teve que engolir alguns desaforos. Onde já se viu parar em frente à uma garagem?

Mas não estava ali de propósito, o carro foi quem escolhera parar no lugar errado. Por que tem gente que já acorda mal humorada? Deve ser a síndrome da segunda feira. Uma moça lhe chama a atenção reclamando do latido do seu cão, que não mais a deixou dormir. Olha para o relógio como a dizer-lhe que não é mais hora de continuar deitada, quanto mais de ainda querer dormir.

Gostava de bichos, mas onde morava não poderia ter nenhum, mesmo que quizesse, mas aquele cão estava realmente lhe perturbando, se fosse em um lugar deserto, já teria resolvido a situação.

Chega o vigia do setor lhe cobrando a contribuição do mês, custou fazê-lo entender que se enganara. Outro, em nome da mulher, vem lhe falar sobre o som alto da noite do último sábado.

Volta a atenção para o carro que não está nem aí para qualquer problema dele. Examina o marcador de combustível, está marcando quase no meio, pode ser que esteja enguiçado, pensa enquanto balança o carro de um lado para outro sentindo o líquido sacolejar no tanque. Gasolina tem de sobra, confirma aliviado, voltando a girar a chave sem sucesso.

Aproxima-se uma viatura, desce um policial fazendo perguntas. Pede documentos, IPVA, habilitação, identidade, fala sobre o novo código, comentando sobre a infração por falta de combustível, pede para ver o marcador. Manda apertar na buzina, acender a lanterna, ligar a seta, e luz de ré, examina o macaco, confere a chave de rodas, o triângulo, os pneus e o estepe. Isso não era problema para ele, que portava até o já esquecido e antigo kit de primeiros socorros, já de saída, o guarda volta, perguntando pelo extintor...

Ainda bem que ele chegara depois de ter afastado o carro da frente da garagem, senão seria multa na certa, pela disposição mostrada pelo agente da lei. Pelo jeito queria garantir a todo custo a primeira refeição do dia.

Chega o leiteiro demostrando felicidade em vê-lo, lhe cobra o mês vencido e lhe comunica o aumento do preço do litro. Logo depois dá uma gorjeta ao lixeiro, pela forma humilde e educada pela qual pedira.

O sol esquenta de vez. Recebe do carteiro a correspondência, confere o número e depois põe na caixinha da parede mais próxima, resolvera poupar explicações... Tenta mais uma vez uma ligação no celular, conseguira o número com um vizinho, afinal já sentia-se como um deles. Não consegue, o telefone continua fora de área...

Liga para o trabalho, justifica a demora passando uma self para comprovar o fato. Sentia-se mal em faltar logo no primeiro dia do mês. Nove horas e meia, consegue enfim a ligação. O mecânico diz não demorar, mas esquece a promessa e o tempo passa...

Quase meio-dia. Sol a pino e lá está ele, em uma rua sem árvores e sem nenhuma sombra e nenhum boteco à vista. Na quadra ao lado, consegue que lhe dêem água. Agradece, volta ao carro a tempo de ver um cachorro preto molhar o pneu trazeiro. Aborrecido, tenta abrigar-se no interior do veículo. Liga o ventilador, mas a bateria parece enfraquecer, desiste usando o jornal como leque.

Ouve um barulho aproximar-se. Era o mecânico a julgar pela aparência suja e o cheiro de graxa. Entra no carro sem cerimônias perguntando qual é o problema, como se ele bem soubesse. Examina alguma coisa, enquanto ouve sem muita atenção as soluções já tentadas.

O profissional não porta ferramenta alguma, sem chave de fendas, sem alicates, nem sequer tem cabo para uma possível chupeta.

Começa a preocupar-se enquanto ele coça a cabeça enquanto mexe em tudo onde ele já examinara.

Evita fazer perguntas, o que quer mesmo é sair desta incômoda situação. Não consegue ficar calado, sem saber o que dizer, arrisca falar alguma coisa lembrando-se da batida na lombada na entrada da quadra. Será que quebrou o motor?

O moço sorri, com aquele sorriso confiante de quem encontrou a solução, leva a mão ao cabo do modulador, localizado a esquerda logo abaixo do para brisa, aperta-o com firmeza e manda ligar a chave da iguinição que desta vez pega na primeira tentativa, soltando um forte urro como se fosse um grito de alegria.

Após limpar as mãos na flanela sobre o ombro, aceita um agrado e sai aos “trancos e barrancos” levando consigo o grunhido estridente da correia na polia da ventoinha, justificando o dito popular:

“casa de ferreiro espeto de pau”.

Perdida a manhã de trabalho, resolve voltar para almoçar, não sem antes, parar junto à placa do logradouro e rabiscar o nome de Rua do Sossego para Rua da Penitência.

Paulo Ivan
Enviado por Paulo Ivan em 08/10/2016
Reeditado em 22/04/2020
Código do texto: T5785803
Classificação de conteúdo: seguro