Carta ao Filho

No dia 7 de junho de 2012, uma quinta-feira bastante fria para os padrões de temperatura do Rio, às 5h25min, Pedro desembarcava no Aeroporto Internacional do Galeão. Retornava de uma viagem de trabalho. Tinha participado de um seminário no Instituto Antártico Chileno em Punta Arenas.

Enquanto aguardava a bagagem na esteira do voo LAN 281, lia uma mensagem no WhatsApp do seu celular que havia acabado de ligar.

“Pedro, não pegue táxi. Estou aqui na área de desembarque. Vim te buscar”.

“Por que Bia está aqui a essa hora da madrugada? Ela sabe que prefiro voltar de táxi. É mais seguro e prático. Algum imprevisto deve ter acontecido”, ele pensava à medida que relia a mensagem enviada pela esposa.

Ele apanha a bagagem, uma mochila e uma bolsa de couro, e segue açodadamente em direção ao hall de saída.

Ao avistá-lo, Beatriz corre ao encontro do marido, abraça-o e, com os olhos em lágrimas, fala bem próximo ao seu ouvido — Pedrinho e Helena sofreram um grave acidente de carro.

— Quando isso aconteceu? Onde eles estão agora? — Pedro, bastante abalado, pergunta — Pedrinho está bem ou em estado grave? E a esposa? — Por favor, diga-me a verdade, Beatriz.

— Estão no CTI do hospital da Aeronáutica, o Pedrinho já foi operado e não corre risco de morte. Helena já sofreu duas cirurgias e o seu estado ainda é gravíssimo — respondeu a esposa, entregando a chave do carro ao marido.

Pedro e Beatriz saem apressados, pegam a Toyota Etios no estacionamento e seguem para visitar o filho e a nora. Durante o trajeto, o pai ainda transtornado faz uma série de perguntas à esposa sobre o acidente e as cirurgias.

Na manhã daquele mesmo dia, o casal, que já estava há cerca de duas horas em pé no corredor do hospital, recebe autorização para visitar o filho. Ao entrar no centro de tratamento intensivo e ver Pedrinho ainda sedado com dreno e sonda, o coração do pai dispara. Ele não quer acreditar que aquela situação é real. Os dois, Beatriz e Pedro, permanecem ali por quinze minutos, o tempo que foi autorizado, calados, um de cada lado da cama, acariciando o rosto do “Nem”, apelido carinhoso de Pedrinho e muito usado pelas pessoas próximas.

Em seguida, eles visitam, no mesmo centro de tratamento, Helena que também está sedada e respirando com ajuda de balão de oxigênio.

Depois dessas primeiras visitas, Pedro e Beatriz dirigem-se à sala de espera e lá permanecem sentados em cadeiras próximas uma da outra, aguardam notícias do filho e da nora.

Na Sala de Espera...

Lá estava o casal...

Com certa frequência, uma enfermeira, alta, magra, de cabelos grisalhos, queixo proeminente e lábios grossos, trajando uniforme branco impecável, e com ar de autoridade, abre a porta que separa o CTI da sala de espera, e anuncia:

“Parentes do paciente “fulano”, por favor, acompanhem-me. A equipe médica gostaria de conversar”.

A cada vez que ela aparece na porta, os presentes ficavam tensos. Todos aguardam e desejam receber boas notícias, mas nem sempre isso acontecia.

Pedro, que sempre foi muito ligado ao filho, não conseguia relaxar um minuto, tampouco conversar com as outras pessoas, tios, primos, amigos e colegas que ali estavam. Ele não parava de pensar nos momentos de alegrias, de dificuldades, de entendimentos e de desentendimentos vividos no dia a dia com Pedrinho.

Os dois, pai e filho, tinham um relacionamento de verdadeiros amigos e se pareciam muito.

É comum os filhos herdarem características físicas dos pais. Embora o mesmo não aconteça com os atributos morais e éticos, há casos de filhos se parecerem bastante com os pais, tanto fisicamente como moralmente. Pedro e “Nem” pertenciam a esses casos.

Os familiares, amigos e vizinhos os comparavam e costumavam dizer, lógico desconsiderando os conceitos científicos e também o de Vassili Grossman, utilizado na sua obra Vida e Destino , que Pedro Alves dos Santos e Pedro Alves dos Santos Júnior eram idênticos.

“Tudo que vive é único. É impensável que sejam idênticas duas pessoas ou duas rosas. Onde tentam, à força, fazer desaparecer suas singularidades e peculiaridades, a vida se extingue”.

O pai, que nada falava ou ouvia dos presentes naquela sala fria e com ambiente angustiante comum aos hospitais, abriu a mochila, pegou o seu caderninho de anotações e começou a escrever uma carta. Na verdade aquela seria mais uma a ser redigida em caderninhos.

A carta...

Querido filho,

Mais uma vez lhe escrevo. Escrevo porque sinto vontade. Não sei se um dia você lerá este pequeno texto. Sei que não o encaminharei, uma vez que as cartas escritas com emoção costumam ser medíocres, como são às vezes as “cartas de amor”.

Diferente de um romance ou um conto, nem sempre as cartas são redigidas para serem lidas.

Hoje, dia 7 de junho de 2012, ao vê-lo hospitalizado chorei!

A lógica da vida, que tanto acredito, abandonou-me, desapareceu como a luz do sol ao anoitecer. Senti o sangue paralisar nas veias e uma dor inexplicável invadiu todo o meu corpo.

O ato de escrever permite-me conversar contigo. Torno-te presente, revivo os nossos bons e difíceis momentos.

Não esqueço quando pela primeira vez lhe peguei no colo e o acariciei. Eu sorria de felicidade! Você, talvez por fome, chorava! Isso já faz trinta anos. Parece que foi ontem.

Sei que durante esses anos, não fui um pai como gostaria de ter sido. Talvez tenha cobrado mais do que cedido. Brincado menos do que deveria. Mas você sempre foi o filho que todos sonham em ter.

Não compartilho da ideia de que pai e filho devem se orgulhar um do outro. Não nascemos para dar exemplos. Nascemos para viver. Você jamais exigiu que eu fosse um super-herói. Também não desejei um filho exemplar.

Mas naturalmente, no nosso cotidiano, adquiri um enorme orgulho de ser seu pai, passei admirá-lo como um exemplo a ser seguido. A sua alegria, espontaneidade, amizade e carinho contagiam todos que vivem ao seu redor.

Tens uma aura especial, um modo de sorrir extraordinariamente belo e pouco comum, calmo, pacífico e bondoso, que pode fazer inteiramente feliz a quem o recebe.

Agora, “Nem”, vamos reviver o que jamais esquecerei...

Aos 14 anos, optaste em fazer concurso para Escola da Aeronáutica em Barbacena, queria ser piloto de avião. Naquela época morávamos em Aracaju e lá não tinha cursinho especializado. Nós transformamos a varanda de casa em uma autêntica sala de aula. E com apoio da sua mãe estudamos diariamente por cerca de sete ou oito meses.

Também fez parte da preparação o treinamento físico. Lembra-se da nossa primeira corrida? Fizemos o teste de Cooper. Você teve vômitos, quase desistiu. Mas aguentou até o final. Sua mãe, com toda razão, quando lhe viu chegar cambaleando de cansaço e vomitando, perguntou se eu tinha enlouquecido. Se não estava exagerando. Você apenas disse que estava tudo bem. Lembra?

Seguimos uma rotina puxada de estudos e treinos, inclusive aos sábados e domingos. O resultado foi bom. Na segunda semana de janeiro do ano seguinte, iniciaste o curso em Barbacena.

Mas antes de completar dez dias na nova rotina de colégio interno, você não quis prosseguir, não queria mais ser piloto. Sua mãe foi lhe buscar.

Nos dias seguintes ao seu retorno à Aracaju, passamos por momentos difíceis. Eu não compreendia e não aceitava a sua desistência tão repentina.

Cerca de dois meses após a sua desistência, me perguntaste se poderia tentar mais uma vez ser piloto da Aeronáutica.

Naquele instante comecei a compreender o que antes não conseguia. A qualquer momento pode-se revisar os planos, os conceitos, as ações e as decisões. O recomeço faz parte da vida.

E fizemos tudo novamente. Você não reclamou de nada, passou no concurso, voltou à Escola de Barbacena e concluiu o curso.

Ainda garoto demonstrou capacidade de recomeçar, atributo não muito comum aos jovens.

Quando foste para Pirassununga fazer a segunda parte do curso, eu e sua mãe tínhamos certeza que conseguiria transformar o seu sonho em realidade. Em breve seria um piloto. Já era um jovem persistente, confiante, estudioso.

Lembro como se fosse hoje do seu telefonema para nos avisar que tinha acabado de realizar o seu primeiro “voo solo ”. Sua voz era pura felicidade.

Na manhã do dia seguinte, dirigi direto do Rio à Pirassununga para lhe dar um abraço. Você estava usando pela primeira vez o cachecol de voo. Ainda não tinha completado 18 anos. Momento inesquecível.

O seu caminho estava traçado. Morava e estudava em Pirassununga, adorava as aulas práticas de voo. Uma ou duas vezes por mês vinha ao Rio nos visitar. Formar-se-ia antes de completar 22 anos, tudo planejado. A vida seguia, vivíamos momentos maravilhosos. Mas...

Parafraseando Fernando Pessoa: “Planejar é preciso; viver não é preciso.” O impensável poderá acontecer no instante seguinte. E aconteceu. Quase ao final do curso foste sumariamente desligado da Escola de Pirassununga.

Lembro também como se fosse hoje, do seu telefonema para nos avisar que tinha sido reprovado em uma aula prática de voo.

“Pai, não consegui manter o avião corretamente em posição de formatura. Estou sendo desligado do curso.” Sua voz era pura tristeza.

Isso faz 10 anos, aconteceu no mês de dezembro. Dias inesquecíveis. Voltaste adulto e maduro. Naquela época, eu e sua mãe morávamos no Rio e nos preparávamos para mais uma mudança de cidade. Iríamos para Moscou. A viagem estava marcada para segunda quinzena de janeiro.

Foi uma fase difícil. Conversávamos muito sobre os novos caminhos que você poderia seguir.

Num final de tarde, na varanda do nosso apartamento, expus o seguinte: “Nem”, não irei para Rússia. Vamos voltar a estudar juntos, como já fizemos antes. Que acha do ITA ou IME ? Talvez USP ou UFRJ ? Lembra-se da resposta?

Eu não esquecerei enquanto viver:

“Pai, eu terminei com a minha carreira de piloto. O senhor quer que eu também fique com o peso de terminar com a sua? Por favor, vá para Moscou com a mamãe. Eu ficarei no Rio para estudar.”

E assim a vida seguiu, eu e sua mãe em Moscou. Você no Rio. Continuamos conversando, mas por um bom período via internet...

Em maio ou junho, do meu primeiro ano na Rússia, as lágrimas transbordaram quando li um dos seus e-mails, que dizia o seguinte:

“Pai, fiz inscrição para o vestibular da UFRJ. Também me escrevi para o curso de Oficial Aviador da Aeronáutica em Pirassununga, vou tentar novamente”.

Alguns dias depois um novo e-mail e mais lágrimas.

“Pai, a Escola de Pirassununga não aceitou a minha inscrição para o curso de Aviador, estou acima da idade máxima. Não faz mal, tentarei o curso de Oficial Intendente. “Não tô nem aí””.

E você, Pedrinho, mais uma vez recomeçava a vida. Além de ser aprovado no vestibular, passou no concurso da Escola de Pirassununga. Estudou com o mesmo entusiasmo de sempre e se formou Oficial Intendente da Aeronáutica.

Você realmente é fora de série. Cursou na Escola de Pirassununga duas vezes.

E continuamos seguindo o dia a dia de nossas vidas...

Vive ainda na minha memória o dia que foste nos visitar e logo após o jantar, bastante orgulhoso, junto da sua esposa, nos mostrou a sua “Carteira de Piloto Civil”, você havia concluído o curso.

Com muito esforço e dedicação você, depois de casado, de vários recomeços, reiniciou e concluiu o curso de pilotagem. Podemos ser parecidos fisicamente, mas não chego nem perto da sua tenacidade e perseverança.

Querido “Nem”, ao chegar de viagem, soube do acidente. Um carro na contra mão, no Aterro do Flamengo, “bateu” de frente no seu “Peugeot”.

Nessa manhã de quinta-feira, estive ao seu lado e da Helena por um pequeno período no CTI, vocês estão bastante feridos. Desta vez, o acaso da vida lhe proporcionou uma “queda violenta”, uma interrupção na normalidade do seu cotidiano.

Mais uma vez será preciso superar e recomeçar. A lógica da vida não te abandonará. Você é a “fênix” da nossa família. Quando muitos o julgavam derrotado você vencia. Mostrou isso diversas vezes.

Tenho certeza que quando despertar da anestesia, mesmo seriamente machucado, você lutará como sempre fez e recomeçará a vida.

Enquanto durar a nossa eternidade, estarei ao seu lado demonstrando com atos o meu amor, carinho e amizade por você.

E quando eu não mais viver, a nossa amizade ficará registrada nas cartas que nunca lhe enviei.

Pedrinho, agora é preciso...

Na Sala de Espera...

A enfermeira alta e magra aparece na porta:

“Parentes de Pedro Júnior, por favor, acompanhem-me. A equipe médica gostaria de conversar.”

Rapidamente o pai fecha o caderninho, guarda-o na mochila e, de mãos dadas com Bia, entra no centro de tratamento. Dirige-se ao cubículo que havia estado naquela manhã. Encontra o filho na cama, acordado e conversando com dois médicos.

Pedrinho não estava triste nem alegre, mas Pedro e Bia perceberam no rosto do filho um leve sorriso. Sorriso que já conheciam há anos, o mesmo sorriso que o fez recomeçar a vida diversas vezes.

O mesmo sorriso de “Mario Quintana”.

“Quero sempre poder ter um sorriso estampado em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre... E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.”

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 29/08/2016
Reeditado em 29/08/2016
Código do texto: T5744045
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