A Vingança
 
Kadu, Carlos Eduardo, é o bassê do Seu Altair. O Seu Altair já bem senhor, na idade em que nada mais importa a não ser o seu bassê, passa seus dias adulando o seu roliço cão. Kadu, que de roliço já passou há muito a obeso, esfrega-se dia e noite em Seu Altair; acorda quando o Seu Altair acorda, dorme quando Seu Altair dorme, rodeia as pernas, não somente de Seu Altair, mas também as das visitas quando se sentam à mesa para as refeições a fim de ganhar lascas de carne e outros quitutes preparados por Dona Margarida.

Dona Margarida, senhora de Seu Altair, passa seus dias limpando os excrementos do Kadu espalhados pela casa, lavando as capas dos sofás onde além de Kadu insistir em se recostar, Kadu faz xixis; cozinhando quitutes que são apreciados por todos, inclusive por Kadu, e, também, reclamando para o marido do obeso e nojento cachorro.

Certa feita, Seu Altair e Dona Margarida resolvem apreciar o tempo quente do Rio de Janeiro, já que no Rio Grande do Sul, o frio lhes tem provocado dentre outras coisas, uma profunda irritação. Seu Altair deparou-se com um grande problema.

- Como vamos levar o Kadu?

- O Kadu não vai! Diz Dona Margarida, já aflita só de pensar o cachorro no colo de Seu Altair dentro do Avião querendo beliscar os amendoins trazidos pelas aeromoças.

-Como? E quem vai cuidar do Kaduzinho? Quem dará a ele os seus remédios nos horários certinhos? Sabe que ele pode ter um ataque epilético se não tomar os seus três remedinhos diários? Tu sabe disso? Tu sabe também que ele só dorme se eu durmo? Se ele fica com o horário desregulado, ele tem pesadelos? Tu sabe disso, Margarida?

Por fim, o casal de velhinhos teve como salvação para mais uma briga por causa do Kadu, o seu filho mais velho, Hilton, o doutor da família, o advogado. Já que o Hiltinho mora aqui mesmo, não irá se importar de cuidar do Kadu por apenas sete dias...

Partiram então Seu Altair e Dona Margarida para sete dias no Rio de Janeiro. Hilton que os levou ao aeroporto recebeu por duas horas e meia recomendações sobre Kadu. Não vai dormir tarde porque o Kadu tem horário, não vai esquecer dos remédios, não vai isso ou aquilo que o Kadu tem um ataque, que o Kadu tem pesadelo...

Quando o avião partiu, Hilton começou a conspirar contra Kadu, finalmente chegou a hora do embate com o concorrente. Afinal, tudo pro Kadu, ninguém, nem ele mesmo, nem seus irmãos, nem suas filhas e sobrinhos recebiam tanto de Seu Altair quanto Kadu, isso na mesma proporção das enraivações de Dona Margarida, ninguém a enraivava mais do que o roliço e nojento Kadu.

Até o segundo dia, Hiltinho, estava tolerando o cão... Esforçou-se em não alimentar a sua psicopatia, ministrou os três remédios diários de Kadu, que estavam arrumadinhos na caixinha com divisórias diárias, limpou trezentas e trinta e nove vezes os excrementos de Kadu espalhados pela casa, alimentou o cão com a ração especial; só a ração semanal de Kadu era mais cara que as carnes consumidas pelos da casa; além, é óbvio, de trabalhar no escritório atendendo aos malucos que buscavam o advogado Doutor Hilton para resolverem seus problemas mais complexos e, às vezes, ignóbeis; de pegar por duas vezes o congestionamento porto-alegrense.

À noite, já passavam das onze, Seu Altair resolveu ligar e saber como iam as coisas.

-Hiltinho, como está o Kadu?

-Ele está bem, pai. E como os senhores estão aí?

-O Kadu tem comido?

-Tem, pai. E como os senhores estão aí?

-Tu tem dado os remédios dele nos horários?

-Tenho, pai. E como os senhores estão aí?

-Olha só, são três: o vermelho às 8h, o branco ao meio-dia e o azul às 22h! É cada um em um horário.

-Sim. E como os senhores estão aí?

-Tu tem dormido cedo? O Kadu só dorme quando não tem mais ninguém acordado na casa!

-Sim.

-Veja bem, não vai levar os amigos pra aí que o Kadu vai estranhar. É muita mudança na rotina dele! Ele pode ter um ataque mesmo com os remédios!

-Sim.

-Vai dormir, tu já passou muito da hora do Kadu dormir, ele vai acabar tendo pesadelo!

-Sim.

-...

Hiltinho estava vermelho e bufando de raiva quando Seu Altair desligou o telefone. Olhou para Kadu e, neste instante, o cão lhe põe a língua para fora e sobe no sofá de pano azul, como se o lembrasse do bendito remédio azul, o remédio para dormir, Hiltinho quase num ataque, atira-lhe o cinzeiro, mas por sorte, não pega em Kadu. Hiltinho sai, respira o ar puro e volta. Olha os remédios de Kadu, respira e ministra o remédio azul; o calmante quem precisa agora é ele próprio, não Kadu.

No quinto dia, pela noite, chegam as visitas que seu pai recomendou tanto que não viessem. Um casal de amigos barulhentos chega de outra cidade para uma visita especial, uma visita ao cemitério para levar algo ao tio. Essa visita promete pernoitar. Hiltinho, nesta altura, prefere os amigos perto para ajudar nos seus planos com Kadu. Afinal, depois de limpar quatrocentas vezes os excrementos de Kadu, pensou nos sofrimentos de sua idosa mãe Margarida...

Feita a visita ao cemitério, os amigos voltam para a casa de Hiltinho e, para acentuar as emoções de Kadu, trouxeram o tio. Kadu parecia começar a planejar um ataque, pois parecia, por seus atos, pressentir que esta noite prometia e que talvez não dormiria, pois agora eram quatro os que não o deixariam dormir.

Conversavam com muita emoção, enquanto Kadu parecendo ter planejado um ataque para espantar as visitas e dar uma lição em Hiltinho, passou a subir à mesa e saltar à pia e saltar ao chão consecutivamente, travessura que nunca havia feito antes. Hiltinho, vermelho de raiva, não sabia o que fazer, quando resolveu lançar Kadu à rua para ver se ele o deixava em paz, já sem importar-se com o que poderia acontecer com o Kaduzinho e nem com ele próprio quando Seu Altair voltasse e, porventura, Kadu tivesse se dado mal. Kadu, ao saltar da mesa à pia, resbalou, caiu batendo com a cabeça na quina da porta do forno que estava aberta por esquecimento do tio que estava tentando assar um galo. Sua cabeça começou a sangrar, e Kadu foi rapidamente perdendo os sentidos e os batimentos cardíacos.

Hiltinho paralisou frente ao cadáver. O tio só exclamou Ave Maria, o homem nem se mexia e a mulher ria.

-E agora? Seu Altair vai ter um ataque! O que que eu vou fazer?

Passaram os quatro, à noite toda, pensando o que fazer. Primeiro tinham que se livrar do corpo. O tio aconselhava fazer o empalhamento do Kadu e dizer ao seu Altair que o cachorro se assustou e endureceu. O homem não dizia nada. A mulher ria e chorava, era melhor enterrar o pobre no cemitério, Hiltinho corria de um lado pro outro e olhava o relógio, daqui à pouco irá clarear e Seu Altair irá telefonar e o que dizer? E quando chegarem em casa? Pior. O cachorro ressuscitar não dá, ou será que daria, perguntou Hiltinho ao tio. Ave Maria, dizia o tio.

Hiltinho de nervoso ou de ataque mesmo caiu sentado no sofá azul em sono profundo. A mulher ria e chorava e também fumava, o tio fumava, bebia e dizia Ave Maria. Quinze minutos depois, Hiltinho levantou com uma grande ideia, vamos fotografar o defunto! E surpreendentemente, desistiu, pois Seu Altair culparia as visitas que ele recomendou que não viessem... Seria pior! Hiltinho desanimou como uma criança. Pela primeira vez, não sabia resolver um problema. Nem o tio poderia aconselhar...

Enquanto decidiam o que fazer com o corpo roliço e obeso do falecido Kadu, clareou o dia. Às 8 horas da manhã, Hiltinho esperava a ligação de Seu Altair para averiguar a medicação de Kadu, eram 8h30 e nada do telefone tocar. Agora que ninguém sairia de casa, pois a qualquer momento o telefone tocaria. Perto da 9 horas, ouviram um barulhão, Hiltinho começou a suar frio, pois reconhecera o barulho das chaves de Seu Altair... A porta se abriu, Seu Altair gritou por Kadu e nada... Ao ver as visitas em sua casa, Seu Altair correu à cozinha e enxergou Kadu estirado e ensanguentado perto do fogão, gritou:

-Kadu! Kadu! Kaduuuu!

Quando estava quase se ajoelhando junto ao Kaduzinho, o relógio do cuco anunciou 9 horas da manhã, e Kadu abriu os olhos e pulou nos braços de Seu Altair.

Kadu parecia ressuscitar. Era apenas um desmaio por conta da forte batida, o sangue era proveniente da arrebentação de um pequeno vaso sanguíneo sem muita importância, a não percepção dos batimentos cardíacos era porque tinham enfraquecido com o ministro do remédio azul.

-Nem pra morrer o cachorro roliço e nojento se presta! Exclamou Dona Margarida ao ver a poça de sangue na sua cozinha.

-Hilton! Exclamou seu Altair.

Hilton já estava bem longe nessas alturas com suas visitas.
Marília Francisco
Enviado por Marília Francisco em 19/08/2016
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