Encontro no Vale da Miséria

O dia ensolarado fez com que eu utilizasse um caminho mais curto, cheio de moradores de rua, o que raramente fazia. Fui seguindo meu caminho entre os deserdados e abandonados pela sorte e pela sociedade. Muitos drogados, outros bêbados. Alguns, apenas desesperançados. Cumprimentava àqueles que notavam a minha passagem, sendo ignorado pela maioria. É isso, a miséria desumaniza as pessoas, sendo uma forma de defesa. Minha rápida passagem pelo Vale da Miséria (como era chamada essa região) estava terminando, até que vi um rosto conhecido. Custei acreditar, era Paulo meu amigo de faculdade? Não? Ou seria mesmo ele? Parei e fingi estar desorientado. Olhei novamente. Tomei coragem e fui falar com o suposto Paulo:
- Boa tarde, sabe me dizer o nome desta rua?
- É só olhar a placa da parede, logo alí.
Fiquei sem ação. Comecei mal a abordagem. Li o nome na placa e perguntei a localização de uma rua das proximidades.
- Tenho cara de guia de ruas? Sei lá. Respondeu o suposto Paulo.
- Não precisa ser grosseiro, foi apenas uma pergunta.
- Vai andando e não me enche o saco, respondeu.
Pela grosseria das respostas, eu estava cada vez mais convencido que aquele sujeito era o meu amigo, desaparecido há mais de dez anos.
Paulo era um aluno brilhante, fazia duas faculdades, enquanto eu, mal dava conta de uma delas.
Inquieto e grosseiro, era intolerante com o que chamava de “estupidez”. Em pouco tempo meu amigo conseguiu ser evitado pelos nossos colegas de faculdade e tornou-se o terror dos professores. Questionava tudo, desde o conteúdo das aulas, até o comportamento dos mestres. Diziam que era diabo em forma de aluno. Acabei sendo seu único interlocutor. Eu o considerava um amigo, mas não sei o que ele pensava a meu respeito. Acabou simplesmente desaparecendo da faculdade. Depois, da casa dos pais, com os quais também não tinha boas relações.
A vida seguiu seu rumo. Conclui a faculdade, consegui um emprego numa instituição financeira, pela minha formação em Engenharia, cumprindo a profecia de Paulo:
"Você vai sucumbir ao sistema. Essa história de moradias alternativas para o povo de baixa renda vai desabar na primeira oportunidade de alta grana". Dito e feito.
Paralelamente ao curso de Engenharia, Paulo cursava Filosofia, não sei de seu comportamento nessa faculdade. Talvez fosse a origem do maior questionamento do mundo.
Sempre questionei esta minha opção de vida, mas acabei por me adaptar. Gosto de caminhar pelas ruas observando a arquitetura e as pessoas. Daí este meu encontro.
- Qual o seu nome? Perguntei. Não é de sua conta respondeu. É Paulo? Não houve resposta. Saiu andando e rindo. A mesma risada sarcástica de meu amigo. Desapareceu. Voltei ao Vale da Miséria algumas vezes e não o encontrei novamente. A dúvida permanece.
 
Gerson Carvalho
Enviado por Gerson Carvalho em 12/07/2016
Reeditado em 06/10/2016
Código do texto: T5695909
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