TEÓFILO E EULÁLIA...

A bordo do ônibus das 10:40 daquela fria manhã de outono, Teófilo e Eulália “puseram os pés na estrada” a caminho da “Nova Iorque paulistana”. Viam-se, de repente, obrigados a enfrentar o trânsito, a burocracia, o incerto e o imponderável... Voltar à cidade de múltiplos sotaques e etnias, tornara-se um inominável desafio para os agora pacatos caiçaras Teófilo e Eulália...

Enquanto o ônibus serpenteava a Serra do Mar, Teófilo e Eulália distanciavam-se cada vez mais das montanhas, dos bambuais, das palmeiras, do infindo azul do céu, das garças, e até daquele único, longínquo e quase imperceptível barquinho na imensidão do Atlântico.

Era 2016, mais uma terça-feira na vida. A viagem, felizmente, transcorrera sem atropelos, e, três horas após deixarem a acolhedora e aprazível Caraguá, chegavam à maior cidade da América do Sul. Em princípio, Teófilo e Eulália pareciam já desacostumados do alvoroço do pulsante Terminal Rodoviário do Tietê, de onde, de metrô, deveriam embarcar rumo à estação Ana Rosa, que os levaria ao entroncamento das linhas norte-sul e leste-oeste. O destino, agora, era a Estação Trianon, ao lado do parque homônimo, bem ali, em frente ao Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista. Indiferente a tudo, o parque e seus habitantes mantinham a mesma rotina das manhãs e tardes de ontem e de anteontem...

Teófilo e Eulália, agora, seguiriam de táxi até a Rua Canadá, no coração do Jardim América. Tinham como destino um daqueles casarões oriundos de um dos inúmeros milagres econômicos brasileiros... Lá no alto, quase tocando as nuvens daquela já parcialmente ensolarada tarde de maio, tremulavam três bandeiras; a da União Europeia, a de Portugal e a do Brasil.

Ali, naquele mar de prédios, janelas, ônibus e automóveis, tudo lhes parecia estranho, e, paradoxalmente, familiar. Era a terceira vez que, nos últimos cinco anos, Teófilo recorria aos serviços consulares da sua cidadania original.

Depois de se identificarem na portaria, Teófilo e Eulália foram logo encaminhados a uma ampla recepção, onde, várias pessoas, muito provavelmente, alguns deles compatriotas de Teófilo, também aguardavam atendimento.

Acomodaram-se e, de olhos fixos em um painel digital, iam tecendo breves comentários sobre o inusitado momento que ora vivenciavam... Por alguns breves segundos, Teófilo chegou a lembrar-se do romance O Processo de Franz Kafka (1,), mas logo teve a sua atenção desviada por um aviso a anunciar o seu nome e a respectiva mesa para atendimento.

Talvez por um misto de ansiedade e nervosismo,Teófilo, já diante do agente consular, tentava descontrair, fazendo pontuais observações sobre as incertezas do clima na cidade de São Paulo, mas logo percebeu ser o tal funcionário de poucas palavras e de senso de humor retraído. Cumpridas as formalidades oficiais, despediram-se do circunspecto e pragmático atendente, agradeceram-lhe a atenção, e ao chegarem novamente à portaria, olharam para trás com a sensação de dever cumprido. Indiferentes a tudo e a todos, os três estandartes continuavam no alto de seus mastros, ao sabor do vento, a tremular no céu, ora cinza azulado, ora azul acinzentado da cidade de São Paulo...

“Ufa!!! Conseguimos, Eulália. Parece que valeu a pena...” O casarão, assim como tantos outros, continuava ali, exibindo toda a sua imponência e sobriedade...

Atravessaram a rua e tomaram outro táxi até a estação Ana Rosa, de onde deveriam embarcar na linha norte-sul do metrô para novamente atingirem a Estação Rodoviária.

Foi nesse momento que Teófilo e Eulália se deram conta de que o bilhete que traziam na carteira, não tinha mais créditos.

“Puxa a vida, Eulália. Vamos ter que enfrentar mais uma fila na vida. Venha, vamos por aqui.”

A hora do rush aproximava-se. Para desassossego de ambos, a plataforma de embarque começava a encher, e, logo estaria lotada.

“Vamos, vamos por aqui Eulália. Dá-me a tua mão. Não te percas de mim.”

Já na bilheteria da estação Ana Rosa, um tanto apreensivo, e ofegante, Teófilo dirige-se à jovem atendente:

“Boa tarde. Um múltiplo de dez, por favor.”

“Mas o senhor não precisa mais pagar o metrô.”

“(...) Como assim, não precisa mais pagar!?”

Por força das marés, dos relógios e calendários, Teófilo e Eulália já faziam parte de um grupo de pessoas que, sem custo algum, poderiam beneficiar-se daquele transporte público. Estavam ambos salvaguardados de tal obrigação. Em princípio, Teófilo e Eulália não sabiam se deveriam regozijarem-se com a boa nova, ou, se deveriam apenas lamentar a brevidade da vida... (...) Afinal, o que eram seis décadas diante da eternidade e do muito que ainda tinham para fazer... Teófilo, que de tudo procurava extrair o lado bom, apenas dizia:

“Que boa nova, Eulália, com essa economia já podemos comprar uma lembrancinha para a pequena Olívia.”

A pequena Olívia era a filha adotiva da sempre atenta e solidária vizinha Maria das Graças, a quem tanto estimavam e admiravam... (sic) Quem meu filho beija, minha boca adoça. Era o axioma que, com relativa frequência Teófilo e Eulália repetiam. E assim fizeram. Em um dos inúmeros quiosques da Estação Rodoviária, compraram um cachorrinho de plástico, desses que emite sons quando apertado.

“Acho que ela vai gostar. Olha só que simpatia esse cãozinho a movimentar a cabeça e o rabo. Estou certo de que a pequena Olívia vai adorar...”

“Até eu gostei. Também quero um pra mim, Téo. Pode ser aquele ali, aquele pretinho com pintas brancas.”

“Não podemos deixar de lhe darmos um nome, Eulália, mesmo sendo ele apenas uma lúdica lembrança da nossa viagem à cidade grande...”

“O meu vai chamar-se Cicote para homenagear o cão da tia Alice...”

“Boa ideia, Eulália. Assim, tanto Cicote, como a tia Alice serão homenageados.”

Embarcaram no ônibus das 18:40hs da Viação Litorânea rumo à aprazível estância balneária de Caraguá.

Teófilo e Eulália haviam deixado o carro próximo ao Terminal Rodoviário. Ao chegarem, só precisariam atravessar a rua. Obediente e prestativo, o velho Fiat 147, envolto pelo sereno da noite continuava ali, à espera de ambos. Também parecia feliz com o retorno de Teófilo e Eulália. A temperatura caíra para 9 graus centígrados. Fazia frio e ventava muito.

“Que bom que deixamos o carro aqui, à nossa espera, não é mesmo Eulália !?.”

“Não sei porque só agora, depois de tantas idas e vindas, o deixamos aqui, Téo! Afinal, quem se interessaria por furtar um Fiat 147 antigo como o nosso!? Quem!? Quem!?” Era o que ambos repetiam...

Teófilo, então, já ao volante do fiel companheiro de tantas jornadas, dá a partida. O carro emite alguns ruídos, parece querer pegar, mas, um tanto reticente, ainda não fora daquela vez. Tentaram novamente, e agora, para alívio de Teófilo e Eulália, com um vigor jamais visto, chacoalhando um pouco, batendo lata, é bem verdade, mas como se estivesse morrendo de saudade, e, também querendo voltar logo para casa, o velho Fiat 147 pega para só parar quando atingiram o número 1029 daquela casinha branca da Alameda da Poesia, a pouco mais de duas quadras da Praia do Romance...

Em tempo; o passaporte, segundo o pragmático e circunspecto atendente consular, seria enviado pelo Correio tão logo fossem cumpridos todos os prazos e formalidades de praxe...

FIM.

Nota:

(1) (1883-1924) Romancista tcheco, de origem judia, nascido em Praga, Checoslováquia. Sua obra está repleta de temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e psicológica, conflitos entre pais e filhos. O Processo (1916) e A Metamorfose (1917) e o Castelo (1926) estão entre algumas de suas obras mais notáveis. 1

Conto de Isidro Fraga

Junho de 2016

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 09/07/2016
Reeditado em 10/07/2016
Código do texto: T5692880
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