Amargo

Aconteceu quando eu estava no centro da cidade. Rua Carlos Gomes pra ser mais exato. Estava com fome e procurava um restaurante por ali enquanto observava as mercadorias dos vendedores de rua. Senti-me tonto, não sou acostumado a fugir do horário do almoço. Comprei uma garrafa de água e sentei-me no meio fio. A poucos metros havia um restaurante, até hoje lembro o nome, chamava-se "Alecrim". Era um lugar simples, self-service. Feijão, macarrão, arroz a grega e um pedaço de frango, meu prato estava feito. O frango não podia faltar. Suco de laranja. Respirei fundo tentando me controlar. Eu já estava tremendo de ansiedade, mas tinha que me controlar para não ir com sede demais ao pote, ao prato nesse caso.

Coloquei a mão no bolso esquerdo. Apalpei o bolso direito. Meu coração acelerou. Meu celular não está nos meus bolsos. Bebi um gole do suco pra me acalmar. Devo ter perdido quando me sentei no meio fio.

- Maldito dia.

De repente um menino pequeno e sem camisa entra no restaurante. Os cabelos grandes e crespos estavam despenteados e sujos. Ele parecia procurar alguém.

- Hei, moço! - ele me chama.

Veio até a minha mesa.

- Você perdeu - colocou o celular sobre a mesa ao lado do meu prato. - isso aqui enquanto bebia água! - ele parecia ofegante. Os olhos esticaram para o meu prato e logo depois desviaram.

Analisei o celular. De fato era o meu.

- Obrigado... Qual o seu nome mesmo?

- Meu nome é Nilsinho... - pensei em como agradecer a Nilsinho. Eu já havia dito obrigado, mas em minha mente isso não basta. A honestidade do pequeno foi admirável e minha sorte por justamente ele ter encontrado o meu celular também. Era um motoG (nessa época era lançamento). Ele conseguiria um bom preço se vendesse por ai.

- Hei, garoto. Quer comer comigo? Pago seu almoço por hoje.

Ele apenas balançou entusiasticamente a cabeça. Mandei Nilsinho escolher o que queria e disse que eu pagaria. Apenas o alertei para que não exagerasse. Observei-o atentamente enquanto escolhia o que comer. O que faria esse pequeno garoto sem camisa por aqui? Ele aparenta ter seus doze anos no máximo. Quando veio sentar-se perguntei por seus pais.

- Tenho pai não, moço.

- E sua mãe?

- Eu moro com minha tia.

- eu tenho que agradecer a sua tia por ter te educado você tão bem...

- se tia Neusa souber que eu achei esse celular e devolvi pra o senhor eu apanho em casa.

Fiquei constrangido. Calado. Não sabia o que dizer. A índole do rapaz, ao que parece foi formada por ele mesmo. Ele reparou a minha falta de palavras e disse-me:

- Tia Neusa não é má não, senhor. Ela que cuida de mim quando minha mãe morreu. Ainda não sei do que ela morreu... minha tia disse que eu sou muito criança pra saber, mas eu já queria saber porque eu já vi gente morrendo nos filmes então eu já sei como é.

Nilsinho comia com pressa. Falava com a boca cheia. Resolvi não questioná-lo. Ele continuou falando.

- Lembro que antes dela morrer ela me mandou pra casa da tia Neusa. Talvez ela tenha ido pescar e se afogou. Eu tinha oito anos, mas lembro de um homem que deu pra ela dicas de pescaria antes de eu ir embora...

- Eram dicas boas?

- Não sei moço, nunca pesquei. O homem disse pra ela que peixe morre pela boca.

Entendi na hora.

Ele prosseguiu.

- Fomos eu e Carla pra casa da tia Neusa. Ela cuida da gente.

- Aha, então você tem uma irmã... Por que você não está estudando com ela?

- Moço, ela trabalha pra ajudar tia Neusa com as coisas da casa. A gente não tem tempo pra esse negocio de escola não.

Eu tentava comer calmamente, mas sabia que o falatório do rapaz não iria parar. Resolvi deixar que ele conduzisse a conversa dizendo o que bem quisesse.

- Moço, essa comida tá boa. Bem melhor que a sopa que a tia Neusa faz... - dava colheradas apressadas. - ontem a gente comeu sopa de... - ele parou abruptamente.

- Sopa de que ? - perguntei.

- Nada não. Tia Neusa diz pra eu não sair falando coisa assim por ai. Nem sei por que...

E sua irmã, como ela é? - tentei desviar o assunto da conversa para não ter que ouvir do garoto que a sopa que a tia lhe dava era de água. Ou de papelão quem sabe. Entre uma palavra e outra saída da boca dele eu rememorava sobre minha condição que sempre fora tão melhor que a dele. Tão infindavelmente melhor que a dele...

- Minha irmã passa o dia em casa e de noite ela vai trabalhar. To cansado de trabalhar com tia Neusa catando as latas aqui da rua. Pedi pra Carla me levar e ela disse que não... Acho que tia Neusa cata as latinhas de dia e Carla cata as latinhas de noite. Deve ser isso. Acho que elas se revezam em turnos. Vou falar pra Carla começar mais cedo por que ela sai muito tarde. Perde muito tempo se arrumando, sabe como é né, moço?

Passei a me questionar sobre o verdadeiro ofício da moça. Melhor não perguntar.

- Carla não diz nunca pra onde vai quando sai pra trabalhar. Um dia ela tava nervosa e eu perguntei o que ela ia fazer e ela disse que ia vender o corpo, mas ela sempre volta com todas as partes. Eu olho todo dia. - Nilsinho estava realmente intrigado com a natureza da profissão da irmã. - Tia Neusa mandou ela parar de brincadeira com a vida, deu um grito nela. Ela deveria estar tentando brincar com a minha cara...

Naquele dia tive que ouvir. Mesmo que a comida não descesse mais por minha garganta tive que sorrir pra ele e ouvir da própria ignorância dele. Ignorância essa que eu não sei se é uma benção ou maldição. Naquele dia ouvi palavra por palavra de um pequeno jovem que me contava tudo o que não sabia e eu contemplava todo o esforço que faziam para que ele não se desse conta de como vivia. Engoli junto com a comida a história de um jovem cuja mãe tinha sido assassinada pelo tráfico de drogas e por isso tinha que ser criado pela tia. Tia que se esforçava ao máximo para criá-lo da melhor forma possível mesmo tendo artrite, obesidade e cinquenta por cento da visão de um olho. A história de uma mulher que não gostava de ver sua sobrinha se prostituindo para ajudar com a renda da família, mas que não via outra forma de conseguir dinheiro honestamente. Eu vi a história de duas pessoas tentando manter a inocência e pureza de uma criança.

Resolvi não desiludir Nilsinho. Eu não conseguiria fazer isso. Ele foi para casa com o estômago cheio. Eu fui para casa com a cabeça cheia de coisas