Ester e Eu

Noite de sábado e lá estava eu. Eu e meus dois amigos: Lucas e Rafael.

- Vai lá cara, fala com ela. - disse Rafael à Lucas.

- Vai você. Essa com certeza é difícil.

Apoiei-me com os cotovelos no balcão, virado em direção à entrada. Pus-me entre os dois e indaguei:

- Quem é a moçoila da vez?

Rafael fitou-me com um ar de estranheza.

- Cara, só você pra falar coisas assim. "Moçoila", ninguém fala mais isso não!!!

Lucas concordou.

- Qual a da vez? - voltei a indagar.

Lucas abriu a boca para falar-me...

- uma bebida - eu o interrompi. Ele, particularmente, não gosta de ser interrompido. Confesso: gosto de interrompê-lo.

A balconista, uma mulher de cerca de trinta anos, olhos pretos e cabelos presos perguntou o que eu queria.

Lucas tentou retomar a palavra

- A da vez é que...

- Uma limonada, por favor. - eu o interrompi novamente.

Rafael olhou-me entendendo jogo que eu fazia.

Lucas, um rapaz de pele branca, já estava ficando vermelho.

Soltei um risinho de canto de boca.

A balconista serviu-me. Peguei o copo do balcão.

- A da vez é... - ele começou a falar mais baixo. - Ta vendo aquela garota ali sentada na mesa próxima à porta?

Lucas estava completamente errado. Não era uma moça. Era uma mulher. E que mulherão!

Cabelos pretos e lisos até a altura do ombro. Sobrancelhas arqueadas, olhos negros, nariz fino e lábios carnudos: vermelhos por causa do batom. Notei que estava acompanhada apenas de um copo com uma bebida que não soube distinguir qual era. Ela pegou copo e bebeu um pouco. Pude ver que no braço esquerdo trazia a tatuagem de uma flor.

- Sim, que tem ela?

- Antes de você chegar estávamos discutindo sobre que teria coragem de "chegar nela" - respondeu-me Rafael.

- Se o homem chegou à lua você também chega nela. - repliquei.

Eles riram.

- E você, tem coragem?

- Areia demais pro meu caminhãozinho.

- Podíamos fazer uma aposta - Lucas propôs.

- Fale-nos dela então...

- Pelo que sabemos ela chegou na cidade há pouco mais de um mês. Ela já rejeitou a quase todos... sabe Gabriel Pessati?

-sim. ele é o campeão de boxe da cidade... - respondi.

- Foi o último que ela deu o fora...

- Mas todas as mulheres da cidade querem sair com ele - interrompi.

Lucas continuou seu monólogo.

- Dizem que ela deu o fora nele na festa. Gabriel é o tipo de cara que basta respirar pra que as mulheres queiram sair com ele e ela deu o fora na frente de todos. Podemos dizer que naquela noite ele foi jogar vídeo game em casa.

- Continua!

- antes dele foi o Leandro Borba ( o segundo playboy mais rico da cidade). Fora ele ja passaram o Félix (capitão do time de futebol da cidade) e o Cícero (um genio, estudante de medicina que é conhecido pelo bom papo com as mulheres). Esses são os que eu sei que tentaram.

- Ninguém teve sucesso? - perguntei.

- Não, Ninguém, Charles!

- Mas e quanto a ela? O que ela faz ? - notei que se concentrava em algo. Havia algo em seu colo e ela olhava constantemente. Neste exato momento estava de cabeça baixa.

- Soube que o nome ela é Ester. Estuda Letras na Universidade Federal. Quando não está na aula está na biblioteca da cidade.

- Ela deve ser lésbica! - Rafael afirmou.

- Pelo jeito não. - Lucas retomou - Luciana também flertou com ela.

- Cara! - Rafael abriu os olhos surpreso.

- Pois é amigo. A lésbica mais gostosa do campus também levou um fora.

Nesse momento eu, Charles, tive uma epifanía. Vi de relance o que estava no colo dela.

Perguntei:

- Que eu ganharia se flertasse com ela agora?

- um fora - Rafael respondeu de imediato e com um sorriso no rosto.

Bebi o último gole da minha limonada e comecei a caminhar lentamente em direção à entrada. Quando cheguei bem perto parei. Virei-me em direção a ela. Sentei-me na cadeira frente a ela e fitei-a com persistência.

- O que você quer? - perguntou ela.

- "Não te quero senão porque te quero

E de querer-te a não querer-te chego

E de esperar-te quando não te espero"

- Quem é você?

- Ora Neruda, ora Pessoa... Sou mais de um. Asseguro-lhe. E Você quem é, Sra. Huxley?

- "Sou flor, delicadeza, espinho, amor, dentes, pele e lábios.

Sou feita de certezas, dúvidas, nuances, desejos, razão,sanidade e loucura.

Sou um emaranhado de definições."

- Interessante! - exclamei

- Sra. Huxley? Você viu?

- Falando poeticamente pode-se dizer que eu sou daqueles que fazem a alma gozar antes de tocar o corpo. Falando literalmente digo-te que foi fácil ver teu livro enquanto eu estava ali no balcão. Que está achando da cidade?

- Interessantíssima! A cidade conserva uma beleza histórica incrível...

- e quanto às pessoas da cidade?- eu a interrompi.

- Me perdoa pela sinceridade, mas são em sua maioria enfadonhas...!

Sentei-me a cadeira frente a ela.

- Não vou desculpar, - aproximei-me dela e falei baixinho - terei de concordar. Há muitas pessoas com cabeça grande e muito pouca massa cinzenta.

Ela riu mostrando os dentes brancos.

- Que está achando do livro?

- Por enquanto está interessante. Eu o peguei na biblioteca da cidade.

- Aquela biblioteca vai completar seus duzentos anos daqui dois meses...Que acha de irmos lá juntos?

- Acho bom - ela respondeu com risinho tímido.

- então finalmente alguém com alguma massa cinzenta, não é?

Ela gargalhou.

- Perdão pela sinceridade cruel, mas sim... Não esperava alguém recitando poesia ao ver-me. Na maioria das vezes ouço assédios e cantadas baratas. A propósito, o que você me disse é obra sua ?

- Agora você vai me perdoar a sinceridade, mas eu pretendia lhe lançar mais uma cantada barata. Seria mais um da sua coleção, porém notei seu gosto pela leitura então eu falaria algo sobre a opulência das suas formas, a fartura das suas coxas, a abundancia dos seus... - parei de falar e a olhei de forma meditativa, como que procurando a palavra em minha mente.

- Mas você está a me lançar cantadas baratas com um linguajá culto. Do jeito que você falou pareceu até cômico.

Eu ri um tanto nervoso. Ela riu comigo.

- Provavelmente então eu sou só mais um galanteador barato com um linguajá culto - cada mulher aceita os galanteios no linguajá que merece, pensei comigo mesmo. - Quanto ao poema Eu queria que fosse meu mas não é. É do Pablo Neruda. Um poema chamado "Querer". Quer saber como termina?

- Quero sim - ela ajeitou o cabelo com mão esquerda. Provavelmente é canhota.

- o poema termina assim

"Roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro

E morrerei de amor porque te quero,

Porque te quero, amor, a sangue e a fogo."

- é bonito. Vou anotar o nome.

- que acha de sairmos daqui?

- por que eu sairia?

- por dois motivos - inclinei-me sobre a mesa e me aproximei dela - primeiro por que eu creio que nossa conversa seja mais interessante que seu livro e segundo por que eu conheço um lugar mais aconchegante que este aqui. Topa ir comigo?

Ela olhou-me com olhos meditativos.

- Você me convenceu. Onde vamos?

- Apenas vamos... - e assim eu e Ester saímos daquele bar. Depois disso nos conhecemos cada vez melhor. Dalí fomos para um pequeno café literário. Uma pequena biblioteca que servia café aos seus leitores. O que ocorreu conosco naquela biblioteca fica pra outra historia.