ERA UMA VEZ...

Naqueles anos pré-analógicos do século XX, Feliciano Boaventura, 16, só queria ter coragem para quem sabe um dia andar de mãos dadas, abraçar e dançar de rosto colado com a adorável Tereza Smith, 14, por quem nutria um amor platônico, desses que só mesmo aos adolescentes é dado saber...

Tereza era fruto da miscigenação pós-apartheid, uma beleza afro-européia; olhos amendoados, cabelos encaracolados e de uma simpatia capaz de deixar encantado qualquer um que dela se aproximasse, e, até mesmo de dar asas à imaginação do menos inspirado dos poetas de plantão...

Já a caminho da pós-adolescência, o bom Feliciano só desejava ser seu namorado, mas Tereza, embora nutrisse certa admiração por ele, não lhe dava muitas oportunidades de aproximação. Achava-o um tanto infantil, alguém ainda incapaz de compreender os mais prementes anseios de uma menina moça... Na verdade, Tereza também o achava inseguro, incapaz de tornar-se um gladiador engravatado em um mundo cada vez mais seletivo e competitivo...

Um dia, depois de derrotar os seus mais reticentes alter egos, Feliciano vestiu-se de coragem e convidou-a para um passeio em sua "Yamaha cinquentinha". Feliciano planejara levá-la para conhecer a Represa Guarapiranga, já quase no extremo sul da cidade de São Paulo... Depois, tomariam um lanche; talvez um sorvete, andariam no entorno do lago e, então, já vivendo mais um pôr de sol, voltariam felizes para casa... E, para surpresa do tímido e inseguro Feliciano, não é que Tereza de pronto aceitou...

Quem sabe um olhar mais insinuante poderia deflagrar uma paixão capaz de levá-los ao desejo de tornarem-se namorados, de compartilharem as alegrias e eventuais angústias da adolescência...

Feliciano era mesmo um dos “últimos românticos de um mundo pontocom”, assim costumava definir-se, algo que só compartilhava com os seus mais confidentes botões... ..

Hoje, depois de tantos anos, de tantas idas e vindas, de tantos erros e acertos, Feliciano, já do alto dos seus vinte e poucos anos, ainda se lembra daquela ensolarada tarde do século XX; da brisa a ondular as águas, a movimentar o píer num suave, leve, arrítmico e borbulhante balanço, de uma coreografia aleatória, aquática, espumante, silenciosa...

(...) Como esquecer daquele barco salva-vidas a delinear trilhas, a traçar destinos assimétricos, longitudinais, equidistantes, aleatórios...

Feliz da vida, como nunca se vira, Feliciano reverenciava tudo ao alcance de seus olhos;

a mata atlântica, o planalto central da metrópole, os longínquos arranha-céus, os irreverentes jet skis, e os hábeis hobby-cats a dar nós ao vento, a divertirem-se com mastros, velas e brisas, a fazerem manobras ousadas, a desenhar indecifráveis figuras geométricas na imensidão do lago...

Àquela altura da vida, Feliciano sonhava com o hemisfério norte, traçava planos, para além daqueles ares e mares, para outros cantos da geografia, consultava o Atlas, o globo terrestre, o planisfério; corria o dedo por páginas coloridas, escalava cordilheiras, esquiava nas geleiras, desafiava avalanches, passeava por países, arquipélagos, continentes, trópicos e oceanos... tudo tão perto, tão próximo, tudo logo ali, ao alcance dos seus olhos e do seu dedo indicador...

Feliciano mal podia imaginar que hoje, depois de tantos anos, um “escritor de brochuras” lembrar-se-ia dele e da adorável Tereza Smith, que, a bem da verdade, parecia não dar muita importância para os devaneios geográficos do apaixonado Feliciano...

Ainda assim, Feliciano, apesar de toda a sua timidez, vez por outra, sonhava que tinha Tereza em seus braços e que ela, em silêncio, também o amava, até que o despertador soasse, e o lembrasse de que na primeira aula daquela terça-feira de maio de 1986, teria uma prova de geografia, matéria em que precisava tirar nota oito para ser aprovado. Mas, como Feliciano gostava muito das aulas de Dona Magali, lá ia com a "diminuta cola" que fizera na noite anterior. Afinal, não era tarefa fácil saber de cor e salteado os afluentes das margens direita e esquerda dos rios Amazonas, Tocantins e São Francisco, e, ainda, ter na memória todas as capitais de estados e territórios, além dos picos mais altos daquele imenso país situado abaixo da linha do Equador.

(...) Por onde andarão hoje Feliciano, Tereza e Dona Magali... O que teria a vida feito deles!?

A verdade é que estejam onde estiverem, serão sempre lembrados por um certo escritor de brochuras, que, nas ensolaradas tardes de verão, tal qual o menos inspirado dos poetas, só pretendia dar asas à sua imaginação...

Era uma vez um parque, uma represa, uma Yamaha cinquentinha, um amor adolescente e um certo escritor de brochuras...

FIM

Conto de Zizifraga

Março de 2016

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 31/03/2016
Reeditado em 14/05/2016
Código do texto: T5590890
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