O homem que entendeu que nada entendeu

Em uma noite chuvosa e tediosa, resolvi levantar da cama e ir à biblioteca da Universidade de Coimbra, em Portugal. Vesti minha calça marrom e um casaco feito por minha amada, após eu caçar um urso preto em meus momentos de hobbie. Prossegui a pé e com uma leveza inestimável; era incrível como naturalmente eu olhava apenas para cima, contemplando toda aquela criação, mal me importava com os pingos da chuva que batiam e escorriam pelo meu rosto. Todas as pessoas que cruzavam o meu caminho eram familiares e eu as cumprimentava calorosamente apesar do frio de 10 graus. Cheguei ao meu destino. Logo na entrada da biblioteca existiam armários e lá guardei o meu casaco e enxuguei meu rosto. Após ingressar de fato nos gigantescos corredores de livros a minha visão enturvou-se, uma carga de insuficiência tomou o meu ser por completo; as pessoas que cruzavam o meu caminho não me cumprimentavam nem, ao menos, com olhares. Naquele momento senti-me sozinho. Achei melhor procurar uma mesa para sentar e tomar um café; a mudança foi brusca, não podia entender. Subi cerca de 30 degraus inacabáveis, até o local que ficavam as mesas. Olhei ao redor e todas as mesas estavam ocupadas, continuei andando nas fileiras de mesas redondas. Em súbito, ouvi meu nome "Nunes, Nunes!" Meus olhos procuraram a voz e avistei o Padre Bernabé. Era um homem de estatura baixa e indefeso. Outrora, ele foi meu professor de filosofia; um senhor na beira dos 70 anos e bastante culto, seguro e, aparentemente, humilde. Cumprimentei-lhe e ele puxou a cadeira dizendo "sente-se, querido Nunes. Faz 2 anos que não nós encontramos, mas eu lembro de você perfeitamente. Ministrei algumas aulas na sua turma." Ele parecia feliz por ter me visto, prosseguiu com o sorriso no rosto "oh, conte-me o que se passou nesses anos!" Ainda estava sem forças e inabilitado. Observei um garrafa de café na mesa e, querendo ganhar tempo, apontei para a xícara "licença, Padre, posso?" Rapidamente ele respondeu "ohh, desculpe por não oferecer, caro amigo, fique a vontade." Servi-me vagarosamente. Tomei toda a xícara sem nada falar. Ele observou-me sutilmente e quase sussurrando retrucou "Nunes, o que se passa? Todo esse silêncio; seu rosto pálido e sem vida. O que se passa?" No mesmo momento abaixei a cabeça e disse "não sei, talvez seja..." Antes de eu terminar a frase, sentou-se a mesa um dos professores de Filosofia mais conhecidos e populares daquela Universidade. Não pediu, nem cumprimentou ninguém, apenas abriu os livros de Foucult e Kant; começou a ler sem piscar os olhos. O Pr. Bernabé, naquele instante, voltou a ler os livros de Aristóteles e Sto. Agostinho. Eu estava sentado entre eles apenas tomando um café quente e torcendo para começar um debate, queria aprender algo. Mas não ousei abrir o bico para nada dizer, continuei calado. Após horas de silêncio, o conhecido mestre Heltz, de origem alemã, apoiou suas mãos em meu ombro e indagou "Jovem, jovem! Use seu vigor e sua força para tornar o mundo melhor. Revolucione!" Isso me animou, então perguntei "como, senhor?" Tirando seus óculos, ele disse "acabando com as injustiças, faça a justiça." Depois de observar, o Padre Bernabé, levantou e segurou minha cabeça questionando "você enxerga todos esses milhares de livros aqui? Enxerga, meu caro?" Prontamente respondi "sim", ele prosseguiu "vários desses livros refletem a tentativa de mudar o mundo de algum modo, mas o segredo não é mudar o mundo. Todos esses escritores erraram. O segredo consiste substancialmente em mudar a natureza horrenda do ser-humano, e apenas nosso Senhor é capaz disso nos concedendo o Espírito Santo. Assim, haverá justiça, justiça divina." Subitamente, lembrei-me da minha caminhada a caminho da Universidade, em que a vida e a realidade tornaram-me contemplativo e, ao chegar, apreciei um clima obscuro e cheio de ideias criadas a partir do nada, sem refletir a realidade corretamente e, ainda assim, querendo mudar algo que nem se compreendeu. Aliás, todos esses filósofos que não acreditavam na verdade, dizendo que cada um que a enxergava da sua maneira, sentiam-se capazes de querer mudar algo que será visto por cada um da sua maneira, não podendo, pois, serem considerados melhores. Não obstante, se não podem serem considerados melhores, não podem fundamentar-se em nada para existirem. Entendi, ali, que a filosofia consiste na vida real e não em um apanhado de livros. Disse ao professor "desculpe, mas o senhor não é filósofo; não é capaz de entender o mundo. Caso contrário, não iria querer mudá-lo."