O sorriso do monstro

O homem se debatia enquanto o líquido o cobria pouco a pouco. O cheiro horrível e a forte dor na cabeça, porém, o impediam de raciocinar. Já sentia a criatura se aproximando com sua boca enorme, um fundo escuro e assustador. Que morte horrível! Devorado por uma lagarta gigante, sem socorro, longe de casa. Jamais o encontrariam, sequer o corpo...

O barulho do monstro paralisava aos poucos os membros do desesperado homem naquela noite chuvosa. Achou que ia desmaiar, mas persistia lutando. Enquanto tivesse forças enfrentaria o grande animal. Tentou gritar, mas seu pavor era tamanho que não conseguia mais do que gemer, a garganta lhe era estreita, inútil para a passagem de qualquer som.

No auge do pavor, começou a lembrar, rapidamente, de sua vida, da esposa e dos seis filhos, da favela, do morro, dos pequenos assaltos, da violência na adolescência e na infância. Não conhecera o pai, só "tios", muitos ao longo dos tempos. Surras? Muitas. Nele e dele. Pobre mulher que o aguentava... e as crianças? Lembrou do menor, ainda tão pequeno...arrependeu-se de tê-lo empurrado com tanta raiva no ano anterior. "O menino quebrou a perna sério ao rolar da escada e ainda mancava, talvez ficasse até aleijado pra sempre", pensou como num relâmpago de memória. Quanta raiva acumulada da vida! Quanta mentira! Tantas dores em si e nos outros...

Suas forças, enfim, pareciam no limite; já estava com a cabeça na boca do monstro. Desistiu, mas não sem pedir, mentalmente, perdão a todos: mãe, mulher, crianças, pessoas que tinha roubado ou surrado, aos que devia e a Ele. Admitiu sua miséria e lembrou do Homem que lhe tinham apresentado quando tinha quase 18 anos. "Poderia me perdoar?". Ali reconheceu que não era nada e que precisava de tudo. Enfim, silêncio...

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O dia amanheceu como muitos outros no pé do morro: mais um cadáver na rua.

"Parece que o cara bebeu muito e caiu na entrada do cano. Coitado, de cara no esgoto", alguém comentou.

"Alguém conhece ele?"

"É o pilantra do homem da Arlinda! batia muito nela"

"Seis filhos, maltratava muito. Mereceu!" Cada um dava sua opinião sobre o morto.

Chegou a polícia e mandou todo mundo se afastar. Corpo recolhido e tudo voltou ao normal.

Apenas um fato chamou atenção: ao virarem o cadáver puderam notar que, mesmo imundo, com cheiro de lixo e inchado por tantos anos de bebida, em seu rosto brilhava um sorriso.

José Pinheiro Júnior
Enviado por José Pinheiro Júnior em 07/01/2016
Reeditado em 07/01/2016
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