Lado Sombra

A menina sentada em frente ao computador, comendo pipocas e ouvindo músicas havia descoberto suas facetas. Entretanto, por muito tempo, ela fez questão de mostrar apenas o anjo encantador que todos viam e admiravam. A melhor filha, a melhor namorada, a melhor irmã... Sempre idealizada e mantida numa redoma de vidro. Todos se sentiam felizes; todos amavam a sua vida, menos ela. Ela tinha aspirações que nada tinham a ver com as expectativas alheias. Apesar disso, abraçava o comodismo de seguir as regras ao invés de agir de acordo com suas próprias vontades. E tem mais: as regras não vinham apenas das pessoas que a rodeavam, mas de livros que ditavam o que e como ela deveria ser ou, pelo menos, parecer. Um deles dizia que sua orientação sexual poderia condená-la ao inferno; outro dizia que, se ela não fosse magra e desejável, jamais conseguiria o que queria. Outro adotava a ditadura do namoro, ou seja, ela teria que namorar (como todas as outras moças), ser fiel e não expressar seus desejos mais profundos; caso contrário, todos (inclusive os que supostamente a amavam) viriam com um prato de críticas, cobertas com a mais pura hipocrisia. E, conforme o tempo passava, ela ia adquirindo mais e mais autoconhecimento. Pesquisou muito; analisou-se como uma psicóloga e acabou se apaixonando por si mesma. E esse amor começou um dia antes daquela tarde em que, de forma despojada, a jovem se rendia às guloseimas e às canções da Rita Lee. No fatídico dia em que ela se olhou além do espelho, houve uma dissociação. Enquanto ela trabalhava enlouquecidamente, traduzindo mais um daqueles textos enormes, ela, desejando estar longe dali, pegou no sono. Não era exatamente um sono. Era como se estivesse semiconsciente e visse seus dois lados se separando de seu corpo. Um deles era representação da moça boa, decente e honesta que ela era. O outro, não. Tinha um sorriso sacana e um olhar malicioso. O primeiro vestia branco e mantinha certa pureza e doçura. Era esse o lado que todos conheciam. O outro lado vestia vermelho e levava consigo uma caixa como a de Pandora. Esse lado, só ela conhecia, pois, como já dito antes, havia se acomodado em não responder aos mais velhos, nem discutir relação, nem fazer o que quisesse, mesmo que de vez em quando. Então, como numa fração de segundos, os dois lados se acoplaram de novo e a moça levou um tranco que, como uma ruptura de poema, mudou o rumo das coisas. E, depois de muito se conhecer; depois de saber seu valor; depois de aprender a dizer “não” com mais freqüência; depois de aprender que não era perfeita (e que nem queria ser), ela explodiu. Dali da sala, viam-se cacos de relações. Se pudéssemos congelar os momentos, seus pais estariam boquiabertos com suas revelações, seu namorado ficaria chocado com suas fantasias e seus amigos (os verdadeiros) passariam a admirá-la ainda mais por sua coragem diante da vida. E, há muito tempo ela não se via. E há muito tempo não se via a menina espoleta da infância, com a qual ela fez as pazes. Essa “menina” fazia parte do outro lado; aquele que ela escondia atrás da máscara da fofura. E, enquanto procurava no site de viagens algum lugar além do arco-íris, ela sorriu, sentindo-se mais leve e realmente feliz.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 31/05/2015
Código do texto: T5261009
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