A herança

Naquela tarde eu aprendi algo muito além dos livros; algo surpreendente me fez enxergar a vida com maior profundidade. Mesmo sabendo que eu nunca mais o veria, eu não poderia imaginar o que estava por vir depois que ele se fosse. Meu nome estava em seu testamento e a herança era mais valiosa que ouro. Enquanto a chuva caía naquela tarde fria e chorosa, eu olhava pela janela e me lembrava de quando meus amigos de colégio e eu carregamos o caixão do nosso mestre. Todos nós estávamos preparados para a vida, mas não para sua morte. O tal enfarte fulminante foi um baque para seus pupilos. Tinha uns setenta e poucos anos e não se cuidava, mas soube viver. Amou, brincou, entregou-se à felicidade... Teve muitas mulheres e poucos amigos. Tinha a nós como filhos, mas filhos, não teve. Andava solitário nos últimos tempos, mas sempre alimentando aquela mente incrível. E ao vê-lo ali, sabendo que seria a última vez, nós chorávamos copiosamente, esperando que ele estivesse em um lugar melhor e por merecimento. Eu agradecia a Deus e a ele por ter trazido tanto conhecimento a minha vida e por ter alegrado nossos dias com suas piadas fora de hora. Era mais do que uma fonte de sabedoria; era um grande amigo, cuja generosidade nos encantava. E ali estava ele dentro daquele esquife com uma feição serena de dever cumprido, como se nos dissesse para continuar aprendendo com a vida, sem deixar que as agruras nos dominassem por completo. Assim que deu 5 horas, nós erguemos o caixão e começamos a levá-lo a sua última morada. E nos afogávamos num rio de lembranças, à medida que ele era enterrado naquele chão frio e molhado. Voltando para casa, percebi que todos estávamos em silêncio, mas eu imaginava o que se passava em cada mente. Eu fui o último a descer do carro do Joca e, logo que cheguei a minha casa, eu sentei no sofá e me entreguei ao choro mais uma vez. E naquela tarde, cujo céu parecia querer desabar, eu olhava pela janela e me lembrava de tudo isso. Adormeci no sofá da sala e acordei com o chamado do carteiro, que trazia um embrulho. A essa altura, a chuva já havia passado, mas o meu pesar, não. Ao receber o embrulho, eu notei que era do nosso mestre. Senti que era algo muito bom e fiquei curioso para abri-lo. Liguei para o Joca, que ligou para os nossos outros amigos e contei a ele o que havia recebido. Eles não demoraram a chegar, então juntos abrimos o presente. Isso mesmo; era um presente para cada um de nós. Eram apostilas sobre suas aulas e um bilhete para todos que dizia: “Caros alunos: Quando vocês estiverem lendo isso, eu já terei partido. E por saber da importância do meu trabalho, eu peço a vocês que não deixem de aprender! Considerem esse material como uma herança, já que vocês logo serão mestres também e que terão as mesmas responsabilidades que eu tive. E não se esqueçam: passem o conhecimento com amor e dedicação. Um grande abraço a todos! Fiquem com Deus!” Depois de ler aquela mensagem, ficamos todos em silêncio, como se quiséssemos absorver cada palavra; como cada frase acalentasse nossos corações. Então, eu dei um sorriso triste e fui fazer bolinho de chuva, que por sinal, era o doce preferido daquele grande homem. Tão grande que se eternizou.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 28/04/2015
Reeditado em 29/04/2015
Código do texto: T5223672
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