MINHA PRIMEIRA E ÚNICA VEZ

“Sou analfabeto, não assino”.

Seu Vicente era um funcionário antigo do INSS. Ele não falava, degustava cada palavra dita. Homem de temperamento curto, se é que tinha, Sua caricatura era facilmente marcada, usava um óculos maior que a cara, em mais um dia de atendimento na agencia, chegou a vez de seu Tomás conhecer o Dr. Vicente.

- Em que posso ajudá-lo?

- Vim vê se eu me apusento

- Documentos, por favor

Depois de muitas horas de análise, seu Vicente se dirige a seu Tomás: Está tudo certo: por favor, assine estas folhas.

- Sou analfabeto, não assino.

Essa resposta soou a seu Vicente como sinônimo de burro, preguiçoso, ou até mesmo, vagabundo.

- o senhor não assina? se não assina não sabe ler; Com tanta escola na biqueira de casa, o senhor vem me dizer que é analfabeto?

Seu Tomás era um homem castigado pelo tempo aparentava idade avançada, a carteira de identidade grafava 1956. Intimidado durante a vida por sua condição sócio intelectual, seu Tomás ousou justificar, Doutor a vida no interior é muito difícil, seu Vicente olhando por cima do fundo de garrafa corrigi-o com indignação, eu já disse que não sou Doutor. Seu Vicente de fato não era Doutor, mas era assim que as pessoas, principalmente da zona rural costumavam chamá-lo.

- Me desculpa seu Vicente, é só um respeito com sua pessoa.

- Desculpe-me, corrigiu seu Vicente.

- Tá desculpado também, respondeu seu Tomás.

Não tinha jeito o homem do campo, não entendia nada das letras. Enquanto digitava o documento de seu Tomás no sistema, seu Vicente se dirige a seu Tomás e pergunta: Mas sim o que lhe impede de estudar, ainda há tempo para isso.

- Aguento não doutor, tem dias que eu num consigo nem levantar.

Seu Vicente não o corrigiu mais pelo título de Doutor, apenas mostrou repulsa. - Como não, nunca é tarde para aprender.

- Aguento não Doutor, a primeira vez que fui pra escola eu já era garoto crescido, na hora da chamada a professora começou falar uns nomes diferentes e eu não tava acostumado.

- Porco Espinho era: Anderson, Baturé era: Mauricio, até aí eu me segurei, mas quando a professora disse: José Bonifácio, aí ninguém aguentou, pela primeira vez me manifestei, José Bonifácio não, professora, vareta, e toda sala foi junto. É de imaginar o porquê vareta, eu só não imaginava o poder de articulação de um sujeito franzino, a aula acabou e eu saí de cabeça baixa, aos pouco aquele espigão foi surgido na minha frente, queria brigar; Sou o quinto de uma família de dez filhos, acostumado a brigar com o mais novo, com o mais velho, Deduzi: Vai ser fichinha. Notei que foi chegando mais 1, mais 2 que se multiplicou por 4; Doutor, naquele dia apanhei tanto que pensei que iam me dividir em dois. Cheguei em casa minha mãe não contou duas vezes, e peia de novo, após vinte e quatro horas de soluços, ela me perguntou se eu queria estudar ou trabalhar na roça. Daí em diante nunca mais fui pra escola.

- Ainda acho que o senhor deveria voltar à escola.

- Volto não doutor, os netos do vareta estudam todos lá. Se o avó era péssimo imagina os netos que são fichados na delegacia.

- Tudo certo, daqui a trinta dias o senhor vai ao banco receber seu primeiro ordenado, não vai só, tem sempre um na fila querendo trapacear analfabeto.

- Doutor, ler nu aprendi não, mais somar e dividir bastou um dia de aula.

Joanilson Mendes
Enviado por Joanilson Mendes em 26/01/2015
Reeditado em 27/01/2015
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