A puta gorda

Roeu as unhas até sair sangue. Olhou para o sol e deu o dedo, deu a língua e fez careta. As pessoas passando não entendiam o motivo de tamanha danação. Riam, cuspiam palavras ofensivas, escarravam expressões malevolentes enquanto ela abria uma pequena bolsa para sacar algo e o povo todo em alvoroço buscando espaços para se esconder... Era apenas um sujo pente verde faltando alguns dentes,assemelhando-se a ela mesma que escancarada em um sorriso largo, deixou aparecer os dentes em falta. Penteava os cabelos tingidos e se dobrava em riso, um riso exagerado e aos poucos a cena ia se normalizando, no instante em que ela engoliu uma mosca, ficando engasgada. Tossiu, tossiu até por para fora uma golda malcheirosa. Estava ela de frente a igreja do Sagrado Coração de Jesus e já dizia em pensamento que "é para isso que eu existo, não é oh testa de espinho, para engolir mosca! Se menos tivesse uma dose boa de cachaça para acompanhar...", e saiu resmungando a puxar uma lata velha amarrada a um cordão dizendo ser sua cachorrinha. Estava com soluço, estava com o corpo cansado, estava querendo descansar. De frente ao correio, viu sua imagem refletida na porta de vidro, mas não se reconheceu. Deu o dedo, deu a língua, fez careta e ficou irritada com a repetição dos gestos. Sentiu-se vencida, passou a chorar. Gritou em alto e bom som "puta gorda" para a vidraça na hora em que uma funcionária do correio ia saindo. "Né com você não, é com a outra feiosa, gorda e banguela que me fez careta". A mulher desconfiada apenas ignorou. Já ela encontrou uns cordões no lixeiro ao lado, sentou no banco da praça, pediu um cigarro ao flanelinha, este levou a mão a genitália dizendo que para ela só dava fumo e dos pretos e ela prontamente diz "desse ai, me pagando eu ainda não quero! Desse eu já provei e não aprovei!". Ficou ali distraída a trançar as pernas com os cordões. Tirou de dentro da bolsa um chiclete já mascado, pôs na boca e perguntou a lata cachorra se estava com fome. Voltou a lata de lixo, colheu algumas sobras de comida, degustou como a um banquete, sentiu dores de cabeça e ficou agitada. Levantou-se, viu-se refletida mais uma vez na porta, agachou-se, apanhou um coco seco, correu em direção à porta e o jogou sobre a sua própria imagem desconhecida, saiu correndo em dispara, correndo de si, atravessando a praça, indo atravessar a encruzilhada sem perceber o sinal que se abria naquele instante, naquele instante, o ônibus de linha conhecida, que trazia gente honesta do sítio para tentar a sorte na cidade, o mesmo que a trouxera arrancada da casa dos pais para ser criada na casa da madrinha de respeito, com a finalidade de ser gente, e pela ingratidão infinita de gente, teve em si toda falta de sorte. E no barulho ensurdecedor da buzina do ônibus, ouvia-se a si, em prantos, no dia em que fora posta para fora da casa da madrinha, depois de ter sido deflorada pelo esposo desta. Os gritos de dor do parto sofrido do filho que nascera morto, ela caía no chão como quem caía em si e caía na vida pela sobrevivência. Foi oferecida como carne fresca, era carne fresta naquela hora. Um bando de homens urubu querendo tê-la pra si; um banco de curiosos urubus sobre o cadáver da puta gorda, a puta gasta estirada no chão sem nenhuma gota de sangue. Enquanto cada um dizia o que queria, ela dava o dedo, dava a língua, fazia careta, se abria em sorriso e ninguém saía de perto. Tentou se levantar para pegar a bolsa para...Não conseguiu! Naquele instante, o corpo da puta gorda pesava igual ao dia que fora pegue, pelo padrinho, por traição.