A nega da peruca

Aquela mulher é devota da santa da luz, vive da caridade alheia, de migalhas de afagos da vida. Mora no beco dos casarões antigos, no centro da cidade, por trás da rua dos grandes bancos privados. Tem uma cicatriz acentuada no rosto, sobre a sobrancelha esquerda, lábios arroxeados e olhos vivos. Quando abre a boca em sorriso deixa a mostra os dentes alvos. Anda a catar o vento para passar o tempo e todos os fins de tarde tem como penitência subir os degraus da catedral e do último banco assistir a missa. Carrega consigo um frasco de alfazema para lavar os pés da santa depois do ato religioso.

É uma negra mulher moradora de rua desde que se lembra de si. Prega sempre botões nos retalhos da vida quando, na porta do banco, fica a pedir esmola! Todos já conhecem a sua fala a pedir um auxílio porque sofro de pilepicia e num tenho pai nem mãe, vago por aí sem eira nem beira a me acalentar! Tem as carnes fartas e muitas marcas de feridas nas pernas.

Quando criança fora trazida a cidade para a festa da padroeira, só se lembra que a mãe era florista, vivia de fazer grinaldas para o dia de finados, rosas solitárias para dias especiais, buquês de noivas e arranjos para altares de santos. No meio da multidão a mão dela se desprendeu da mão da mãe e nem o choro, nem os gritos, nem a prouira foram capazes de juntá-las novamente. Os anos fez dela andarilha, entrou nas casa de família pela porta de trás, aprendeu a cozinhar, lavar e passar roupa. Aprendeu a fazer cama e a desarrumar lençóis, a esquentar os pés dos patrões e ganhar agrados no escuro da noite, debaixo da vista das patroas.

Certo dia bebeu licor além da conta, confiou na viagem da dona da casa e da confusão das datas de volta. Fez sala pro filho taludo, fez agrados com seus fartos peitos e pouca estatura e foi pega no flagrante. Jogada na rua da amargura do jeito que viera ao mundo, passou a ser desacreditada pelas distintas famílias pelo ato do sacrilégio. Era uma endemoniada, diziam as frívolas línguas das beatas, que colocara a prova o servo de Deus concebido para o celibato por promessa.

Por promessa se travestiu de lua, passou a ser dama da noite, foi cortejada, amante e senhora dos senhores bem casados mais influentes. Influenciou decisões, foi decidida nas roletas de jogos de grande valor.

Na calada da noite foi pega de surpresa quando descansava sem qualquer pretensão de nada. Sentiu apenas o vulto por trás de si, o líquido despejado sobre o seu cabelo e o fogo alastrando-se por cima de si. Sentiu a batida da porta, o giro da maçaneta, o desespero de levantar-se e o tombo do corpo arremessado ao chão. A testa fora de encontro a quina da penteadeira e o gosto de sangue nos lábios, um cheiro de alfazema no ar e despejado sobre si um vaso de água mantido sabre o móvel aos pés da santa, com flores, o vaso da sua salvação.

Perdera o belo cabelo cacheado, passou a usar peruca, como voto, passou a morar na rua, como mendiga, mendigando as migalhas de compaixão de uns e de outros com a finalidade de todos os dias, no fim da tarde, como devoção, lavar os pés da santa com o cheiro de sua mãe.