ABORTO
É muito difícil para um médico aceitar uma mulher que pratica este tipo de ação, porém, em alguns casos, sinceramente fica complicado opinar contra.
A justiça brasileira permite o aborto em alguns casos, porém a burocracia para conseguir uma autorização judicial chega às raias da estupidez.
Tudo começou há nove meses, como sempre um plantão corrido, cheio de problemas, e dificuldades, não só médicas, mas às vezes de incompreensão.
Ela entrou na sala de exames aos prantos, agitada completamente alucinada, sangrando.
--- calma. Sente-se, conte-me o que esta acontecendo. – disse fazendo-a sentar-se.
--- eu não quero esta criança, estou sangrando. – murmurou
--- como tem certeza de que está grávida?
--- fiz o teste de gravidez de farmácia e deu positivo.
--- ok. Mas ele pode estar errado. – disse tentando amenizar a situação.
--- tenho certeza doutor que estou grávida, e tentei fazer o aborto em casa.
--- você esta louca menina, você pôs sua vida em risco.
Ela me contou com detalhes o que tinha feito, não quero especificar uma ação tão hedionda na história que vou contar, portanto, vamos para o que foi feito, e não o motivo que ela tomou uma atitude tão drástica em sua vida.
--- vou interna-la e fazer dois ultrassons. Um de abdome total e outro transvaginal, e um novo teste de gravidez, preciso confirma o que exatamente esta acontecendo.
--- estou grávida doutor, eu sei, não quero esta criança. – ela parecia completamente descontrolada.
O dia na maternidade é sempre corrido. Passava das 15 h quando saiu o resultado dos exames realizado. O exame de abdome total estava sem alterações que pudessem coloca-la em risco de vida. Entretanto o ultrassom vaginal denotava um sangramento intrauterino, porém o feto tinha batimentos cardíacos.
Resolvi que precisava convencer a paciente há não tentar novo aborto, fui até o seu leito. Havia outras pacientes no mesmo quarto, então chamei a atendente e pedi que a levassem para a sala de exame, precisava de privacidade.
ELA sentou-se bem a minha frente.
--- doutor... Eu não quero essa criança.
Como ser humano eu senti um pouco de revolta, mas eu precisava exercer a minha profissão dignamente.
--- não sei o motivo de tanto ódio, e para falar a verdade isso não me interessa, eu me preocupo com a sua vida e com a vida do filho que você tem dentro do seu útero. De me os motivos porque não quer a criança.
--- vários doutor. Não tenho condição de manter mais um filho, já tenho três. O pai assim que soube que eu estava grávida sumiu com a amante para o Nordeste. Sou viciada em maconha, sei que consigo parar durante a gestação, mas eu não quero cuidar de mais ninguém, nem mesmo de mim, eu quero.
--- calma... Posso encaminha-la para um psiquiatra, um psicólogo, um médico obstetra do posto de gestação de risco, e você depois que a criança nascer, se não quiser você doa, tem tanta gente querendo um filho e não podem ter.
--- não... Não vou dar o meu filho para qualquer pessoa, no conselho tutelar eu nem sei para onde o meu filho iria, só se tivesse alguém que eu conhecesse, e que confiasse que eu poderia levar a gestação até o fim.
--- engraçado, você esta querendo cometer aborto, e se preocupa para quem vai deixar o filho caso a gestação chegue ao fim. Não entendo o seu ponto de vista. – retruquei.
--- simples doutor. Se eu aborto, não tenho com o que me preocupar, é uma cicatriz na minha consciência e pronto, se eu levo a gestação até o fim, vou querer saber como esta o meu filho, se ele é bem cuidado ou não. Não sou a mulher assassina que você deve estar pensando, amo meus filhos, e todos são bem cuidados, só não quero mais começar tudo novamente.
--- deveria ter pensado nisso antes de engravidar, existe tantos métodos para evitar uma gravidez, o seu argumento não me serve. – eu estava começando a ficar enraivecido.
--- não vou discutir com o doutor, se quer tanto que eu leve a gestação até o final, eu levo, e o senhor cuida da criança. – disse ela me intimidando.
Às vezes eu faço muitas idiotices em minha vida. De algumas eu me arrependo, de outras eu me vanglorio.
--- muito bem, fazemos então um acordo, você leva a gestação até o final, e eu cuido da criança quando ela nascer, caso você não a queira ou alguém da sua família, tudo dentro da Lei.
Ela sorriu.
--- negócio fechado.
--- isso não é um negócio. É uma vida de que estamos falando.
Ela baixou a cabeça, como se estivesse arrependida do que tinha dito.
Depois levantou o crânio e olhou em minha direção.
--- tudo bem doutor, vou levar a gestação até o fim, e o filho será seu.
Nossa conversa terminou assim bruscamente.
Chamei minha auxiliar que levou a paciente em cadeira de rodas até o seu quarto.
O dia passou como poeira jogada ao vento.
A moça de corpo franzino, cabelos mirrados, ficou internada por dois dias, foi encaminhada para gestação de risco, e acompanhamento psicológico.
Toda semana ela comparecia no hospital, e eu vi a barriga crescendo, acompanhei o seu pré-natal.
Ficou famosa dentro do hospital, não falava mais em aborto, porém tinha a língua solta, e vivia cantando aos quatro cantos.
--- quando meu filho nascer o Dr. Claiton vai cuidar, ele vai ser o pai.
Confesso que no inicio fiquei um pouco assustado. Ela nunca vinha acompanhada de ninguém, parecia esconder o filho de todos, porém ia às consultas do pré-natal.
Um dia um rapaz apareceu no hospital tentando falar comigo, eu estava ocupado com os procedimentos cirúrgicos e pedi para que a recepção o mandasse subir ate a sala de espera, e assim que fosse possível eu ia ao seu encontro. Coitado. Esperou por longas 3 h, até que finalmente nos encontramos.
--- boa tarde. Disse eu esticando a mão em sua direção.
Ele abriu um enorme sorriso. Deveria ter 19 ou 20 anos. Bem arrumado, com o som impregnando os seus tímpanos, tirou o aparelho assim que me estendeu a mão.
--- boa tarde, me chamo DOUGLAS, sou o filho mais velho, da Doralice, o senhor sabe quem é não?
Atormentado pelo dia a dia, eu não consegui naquele momento, ajuntar as peças do quebra cabeças, e acho que fiquei com cara de bobo. Ele completou a explicação.
--- minha mãe disse que o senhor vai ser o pai do meu irmão.
Sinceramente eu não sabia se ria ou se chorava.
O rapaz a minha frente era filho, da Dora, a gestante que tinha tentado o aborto. Não liguei o nome porque já a chamava sempre pelo apelido.
--- claro... Desculpe-me, aconteceu alguma coisa com a sua mãe.
--- não... Claro que não. Queria apenas conhecer o senhor, pois duvidei da história que ela contou, além do mais, tenho mais dois irmãos pequenos, e estamos vivendo um o pouco que eu ganho, e com alguma ajuda do padrasto que sumiu, ele manda pelo correio certa quantia em dinheiro. Sabemos que ele esta em Salvador, pelo carimbo do correio, mas já verificamos que o endereço não é o correto.
--- entendo. E você o que faz na vida. – perguntei
--- estudei até o colegial, parei para trabalhar, sou servente de pedreiro, mas um dia se Deus quiser eu volto a estudar.
--- Deus quer, não é ele quem faz o nosso destino, ele apenas mostra o caminho, e nós podemos segui-lo ou não, a estrada sempre tem duas saídas, somos nós que escolhemos o que queremos de nossa vida. Nunca se esqueça disso. Não jogue a responsabilidade do que você é o venha ser para Deus, isso é relegar responsabilidade, nunca faça isso se quiser ser alguém em sua vida.
O jovem escutou atentamente o que eu disse.
Colocou novamente o fone de ouvidos.
--- gostei do senhor. – disse já saindo.
Respondi.
--- eu também gostei de você. – não sei se ele escutou minha frase, provavelmente não, pois o som estava ligado.
Como eu disse Dora compareceu várias vezes ao Hospital, às vezes apenas para me mostrar a barriga que crescia a olhos vistos. Nunca me pediu nada. Apenas afirmava. Ele esta chegando o filho é seu. E ria descontroladamente.
Parte da equipe do hospital ficou sabendo da história. Todos nós sabíamos que eu não poderia ficar com a criança. Eu acreditava que ela, assim que a criança nascesse mudaria de opinião.
O tempo passou. O tempo sempre passa. Envelhecemos a cada minuto, a cada hora, a cada dia, estamos sempre caminhando em direção ao dia final. Fico sempre pensando nisso, gosto de pensar na Morte, porque acho que convivendo diariamente com ela, eu apreendo mais, e deixo há danada um pouco mais longe de mim.
Tirei quatro dias de descanso e fui para o sítio, o calor estava tanto que resolvemos descer a serra e aproveitar o dia em Ubatuba, são apenas 40 minutos. Passamos um final de semana maravilhoso, eu e a Aline. Aconteceram fatos pitorescos, que contaria em uma próxima história, hoje estamos apenas falando de Dora.
Segunda-feira.
Entrei no hospital como eu sempre faço. Percebi que havia um ar de mistério envolvendo o semblante de todos.
Guardei minhas coisas. Troque de roupa, e fui pegar o plantão.
A plantonista veio sorrindo ao meu encontro, coisa que ela nunca fazia, era séria, um pouco taciturna para a realidade do nosso dia a dia.
--- bom dia doutor Claiton. Esta sabendo da novidade?
Fiz cara de espanto.
--- não... Qual é, tivemos aumento. – indaguei brincando com a situação.
--- aumento... Acho que não vai sair tão cedo, mas pelos boatos sua família vai aumentar hoje.
--- não estou entendendo.
Ela sorriu, deixando todos os dentes amostra. Estava pasma com a situação.
--- a gestante Doralice esta em trabalho de parto, e ela disse que o filho é seu.
Comecei a rir. Não convinha explicar a situação naquele momento. Eu disse que assumira o filho se ela mante-se a gravidez, agora tinha que cumprir a minha palavra.
Fui em direção ao pré-parto.
Lá estava ela se contorcendo em dores.
--- doutor Claiton, que bom que você chegou, agora eu fico mais tranquila. – disse Dora, sentando-se na cama.
A enfermeira chefe veio ao nosso encontro, rindo.
--- o seu filho vai nascer, já escolheu o nome.
Não queria brincar com a situação, mas precisava manter a calma.
--- ainda não, mas que tal Claiton Júnior.
Dora teve uma contração forte.
Deitou-se.
--- legal eu concordo doutor, mas acho que ele esta nascendo.
Fiz o exame obstétrico e a levamos correndo para a sala de parto.
No corredor, ela começou a gritar.
--- doutor, seu filho esta nascendo.
Eu ria. Meu Deus. Minha noiva trabalha no mesmo hospital. Quem sabia da história, tudo bem, mas minha vida é tão atribulada que jamais eu mencionei minha promessa a ela, sobre ficar com a criança.
O parto foi tranquilo, e até mesmo engraçado, pelas palavras que Dora dizia durante as contrações.
--- doutor, é seu filho, ajuda doutor. Doutor, ele vai ser lindo.
E nasceu mesmo lindo, olhos azuis, pele macia, clara como neve.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
--- doutor, o senhor jura que vai cuidar da criança.
--- eu juro que cuidarei se ninguém da sua família quiser cuidar.
--- ninguém quer. O senhor me deixa amamentar o Claiton? – ela perguntou como se eu tivesse o direito de impedi-la de um ato tão majestoso.
--- o filho é seu Dora, eu apenas lhe fiz uma promessa e vou cumpri-la de acordo com a Lei.
A alta de Doralice seria em 48 h. o que nós não sabíamos é que por ela ter comentado a história durante o pré-natal, havia uma denuncia junto ao Conselho Tutelar de que ela iria abandonar a criança. O que entre aspas não era verdade.
A assistente social vem ao meu encontro.
--- soubemos que o senhor vai adotar o menino da paciente Doralice.
Eu sei de todos os tramites jurídicos para que isso pudesse acontecer, sei também que existe uma lista de espera de casais desejosos de uma adoção.
--- a história não é bem assim, eu sei das complicações jurídicas, agora eu preciso saber da sua opinião, porque ela não quer dar a criança para a adoção.
--- eu tinha certeza de que o senhor sabia de tudo, e que fez isso para que ela não abortasse, porém o conselho tutelar esta vindo para levar a criança para o Lar Bom Jesus, e também estão pedindo a guarda dos dois outros filhos menores que ela tem.
--- calma... Disse eu já transtornado. --- isso é errado. Ela cuida bem dos dois filhos, inclusive eu conheci o filho mais velho, excelente menino.
--- eu sei doutor, mas é a lei, há uma denuncia contra ela no conselho tutelar, por tentativa de aborto.
--- quem fez a denuncia.
--- não sei.
Olhei em nos olhos da assistente social.
--- você me conhece há muito tempo, deixa que eu resolva isso.
--- muito bem doutor, eu deixo, mas ela não vai poder sair com a criança do Hospital. Olhe, eu conheço um excelente advogado, que poderá orienta-lo a respeito do caso, tome este é o telefone.
Acho que a história esta ficando longa demais.
Vou deixar o final para outro dia.
Boa noite amigos.