NINGUÉM FAZ FALTA A NINGUÉM

Mônica sentou na beira da cama, deu um pequeno sorriso, deitou e fechou os olhos...

Engraçado como levamos uma vida inteira para entender certas coisas. Com Mônica foi assim. Criança muito estudiosa e sonhadora. Fazia planos, queria ser bailarina e sempre dançava pela casa, fazia pose na frente do espelho, ria, cantava, imaginava estar com lindas roupas, longas e rodadas, dançando sempre. Queria ser uma pessoa inteligente e estudava demais, estudava tudo que parasse em suas mãos, não perdia uma oportunidade. Cursou balé, piano, desenho e pintura, culinária, etiqueta, corte e costura tudo, não importava o que fosse, mas queria sempre estar fazendo algo diferente, aprendendo.

Na adolescência, além de tudo o que fazia, entrou em aulas de jazz, que delícia estar ali dançando. Andava pelas ruas sempre com uma música na cabeça. Tudo acontecia muito precocemente. Com dezessete anos já estava na primeira faculdade. Fez mais duas, e como gostava de estudar, pesquisar, ser desafiada...

Também muito cedo conheceu Marcos, que seria o homem da sua vida e bem cedo, casaram-se. Mônica continuou estudando, começou a trabalhar, e amava tudo o que fazia. Teve o primeiro filho, conseguindo administrar sua carreira de bailarina e professora com sua vida doméstica, uma correria, sempre de lá pra cá, dirigindo no louco trânsito de sua cidade, mas nada a incomodava. Vieram outros filhos, cinco no total, e ela foi, a cada nascimento de um filho, diminuindo o ritmo e ficando em casa para cuidar do marido e dos filhos. Acabou largando tudo o que fazia fora de casa, mas tinha tanta coisa para fazer naquela época de sua vida. Deixava dois filhos na escola, levava outro para a natação, outro para o cursinho de Inglês, e com um ainda no colo. Depois ia para casa, via o almoço, arrumava a cama de cada um no maior capricho, deixava tudo perfumado e perfeito. Quando via, já estava na hora de começar tudo de novo. Ia pegar os que estavam na escola e deixar em algum curso, no caminho pegava os outros e deixava na escola. Em casa novamente, sempre se arrumava para esperar seu marido, querido, amado, amigo, companheiro. No final da tarde, trazendo seus filhos para casa, agradecia por ter tanta força e garra, tanto amor por aquela família que formou, sentia-se cansada, mas útil, importante para todos e isso a satisfazia. Como aprendeu desde sempre, dançando conforme a música.

O tempo foi passando, e tudo mudando, como acontece naturalmente. Dos cinco filhos, três casaram-se e dois foram morar no exterior. Cada um com sua vida, com suas características, com seus sonhos, com seus planos, com sua individualidade. Mônica já não estava mais nos planos de seus filhos, já estava bem mais velha, talvez até já incomodasse com alguma opinião ou conselho, pensando ajudar. De repente a casa tão alegre, tão cheia de conversas, brigas, brinquedos, cadernos fora do lugar, estava vazia, silenciosa. Agora eram apenas Marcos e Mônica.

Habituada naquela correria, o mundo foi parando, os dias ficando mais longos, a solidão era sua companheira. Seu marido ainda trabalhava como fez a vida toda, lutando, viajando, com a vontade de dar uma vida estável e leve para seus filhos. Conseguiu, mas eles não pareciam valorizar nada disso, cada vez mais distantes, as visitas eram raras, nada mais era como antes.

Marcos sempre muito ocupado, quando chegava, depois de um bom banho e jantar ia logo para frente do computador, acabando o trabalho, muitos números, contas, coisas importantes a fazer. Demorava tanto que, às vezes, o dia clareava e ele estava ainda em meio a números e projetos, telefonemas. Não era o que ela esperava. Pensou que sozinha com seu marido, fossem voltar os momentos de namoro, intimidades, passeios, já que estariam mais livres, só eles curtindo a vida a dois. Que nada...

Então Mônica, cada vez mais sozinha, começou a se questionar sobre o tempo, sobre o que fez da vida dela, se havia feito o certo, em que momento se perdeu. Sentia-se agora como um dos móveis da casa. Ali, vendo seus programas na TV ou conversando com alguma amiga pelo telefone. Sem a atenção de ninguém e sem nada importante para fazer, já havia feito muito.

Certo dia, Marcos foi deitar mais cedo e, por causa de um filme que estavam assistindo, começaram a conversar. Falaram sobre filhos, sobre o amor, sobre a vida corrida que tiveram, sobre o que abriram mão, enfim, parecia ser uma boa conversa. Então Mônica resolveu falar dos seus sentimentos, de como se sentia inútil, sem objetivos, sem motivos verdadeiros para viver. Chegou a dizer que só o que a mantinha viva e feliz era ser útil a ele, os dois já com mais idade, e ela se vendo como a companheira inseparável daquele homem que sempre foi seu príncipe encantado. Usando o seu bom humor, uma das poucas qualidades que ela achava ter, perguntou o quanto ela faria falta se morresse primeiro. Queria saber o que ele faria sem ela, rindo enquanto perguntava, esperando ouvir uma resposta bem romântica, mas ele friamente respondeu: - Ninguém faz falta a ninguém...

Ainda sem acreditar, apenas conseguiu perguntar: - O quê?

Novamente a mesma resposta fria, simples e curta: - Ninguém faz falta a ninguém...

O mundo se apagou, ela parou de sorrir, a conversa acabou, Marcos dormiu e nada parecia claro para ela, precisava pensar refletir, lembrar, julgar, tudo rodava na sua cabeça, tudo se misturava... amigos, estudo, casamento, festas, viagens, sorrisos de bebê, choros, dança, infância, dedicação, correria, doação, beijos apaixonados, saudades, problemas, alegrias, retratos, pais, avós, filhos, marido, irmãos, tudo... tudo... foi revirando essa vida, voltando, pesando, e aquela frase batendo como uma marreta numa pedra: ninguém faz falta a ninguém, ninguém faz falta a ninguém, ninguém faz falta a ninguém...

Mundo de descartáveis, de substituíveis, de desamor, de egoísmo, não havia mais espaço para sonhos, para a música, para a dança, para voos e valorizações.

A noite passou, novo dia chegou, e a cabeça rodava, o que fazer se não tinha mais nada a fazer?

Ainda com todo o filme de sua vida passando na sua mente e sem parar de escutar que "ninguém faz falta a ninguém", abriu o armário de remédios, pegou aqueles comprimidos que um dia precisou usar para se animar um pouco, logo depois da saída de seus filhos de casa, encheu um copo com água e foi para o seu quarto, seu ninho, seu refúgio. Ali, perto daquela cama muito bem arrumada, tomou todos os comprimidos das duas caixas, não tinha mais nada a fazer.

Mônica sentou na beira da cama, deu um pequeno sorriso, deitou e fechou os olhos...

Mariza Schröder
Enviado por Mariza Schröder em 31/10/2014
Reeditado em 03/11/2014
Código do texto: T5018363
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