A MORTE ENSINA A VIVER

A MORTE ENSINA A VIVER. Esta expressão é minha. Eu acabei de criar. Veste-me quão bem à própria pele. Sócrates, Shakespeare, Galileu, todos criaram suas máximas. Então, senti o mesmo insight. Eu era muito pequena, quando senti o fardo da vida nas costas. Sou nordestina. Nasci numa terra árida, esturricada, dura igualmente o coração de muitos homens, inclusive o do meu pai. Como Deus criara gente tão rude, tão braba e ignorante? Deus os fez mansos, mas eles se fizeram assim. Aprendi que a seca era um ciclo. Ora pior que o Saara, ora melhor que a Amazônia. Porém, o coração do homem não, é sempre a mesma patifaria. Pense a realidade complexa da natureza humana? Eu era uma criança muito calada, igualmente uma estátua. Imagine a escultura de Rodin. O que não falava explodia dentro de mim e saía pelos meus poros: cabeça, ouvido, pele, nariz, olhos. Eram os meus sentidos a gritarem. Como ninguém me ouvia, inclusive os adultos; passei a falar com as árvores, os rios, as plantas, as flores, os pássaros, os animais. Transformei-me numa franciscana sem saber. Quando não conversava com a natureza eu pensava; pensava, pensava até o sono me pegar. Pegava-me e eu me deixava levar. Muitas vezes me levou a lugares que nem imaginava. Tudo começava como se eu estivesse num sonho. Uma vez, foi debaixo do pé de jasmim; outra vez foi na beira do riacho; outra foi no jardim de casa. Mas antes, eu inventava umas histórias; criava umas poesias e até músicas eu cantava. Canções diferentes das que mãe cantava pra mim. A minha cabeça era uma fábrica de fantasias, uma fábula só.

Nasci praticamente dentro de uma igreja. Mamãe estava na missa de barriga pela boca e teve que sair às pressas pra eu nascer. O hospital ficava ao lado da igreja. O padre fazia a homilia do menino Jesus. Assim, eu vim ao mundo no dia 25 de dezembro, num domingo, às nove da manhã. Foi aquela festa no hospital. O povo da igreja foi visitar a minha mãe, não levava ouro nem prata, mas roupinhas, sapatinhos de lã para uma menina, nem pobre nem rica, simples. Vestida de roupinhas azuis, eu me senti a menininha de Deus!

Senti uma sensação extraordinária quando eu aprendi a ler. Encantei-me inexplicavelmente por um amigo fiel: o livro. Este, depois de Deus nunca me deixou sozinha, Deus surgiu na minha vida, antes mesmo de falarem para mim. Eu sinto que foi quando mamãe saiu da igreja para maternidade. Entre três e quatro anos de idade, subia num tamborete, pegava um livro bem grande, que vivia aberto sobre a mesa e passava horas a folheá-lo. O interessante é que quase ninguém o lia. Mas, uma vez ao ano, o padre vinha lá em casa, abria o livro e lia a mesma passagem do dia em que vim ao mundo. Era meu aniversário e repetia o mesmo sermão. Descobri que se tratava da Bíblia e que Deus além de morar na natureza, também morava naquele bendito livro. Por isso, sentia a mesma sensação de quando conversava com a natureza.

Para mim, mesmo errada a morte é certa. Disso tenho plena convicção. Quando criança, eu senti a morte quase na própria carne. Vi a esfomeada devorar uma ruma de gente. Uma fome pior que o sol nas plantas e na terra; pior que a nossa própria sede. A maior crueldade foi quando ela levou meus irmãozinhos e nada pude fazer. Mas pudera, eu só tinha nove anos. Aí, vi que nem gente grande a encarava. A sua crueldade levava até os mais fortes. Quando ela ceifou o meu avô, a minha tia segunda, seu Josias, todos octogenários. Pensei que ela fosse boazinha e só levasse os velhinhos. Estava piamente enganada. Nem padre, nem rezadeira, nem freira, nem pastor, nem bispo nem ninguém conseguia ressuscitar os bebês. Ficava pensando: Cristo ressuscitou Lázaro, Tabita e a Ele mesmo. Mamãe rezava tanto, não chegava um ano de vida, a esfomeada vinha e levava a sua cria. Muitas vezes vivo a matutar o porquê de ela levar as criancinhas, com tantos adultos chatos no mundo. Por aqui, os bebês que morrem chamam de anjo. Ainda bem que são anjos. Aprendi que aqui é lugar de gente e não de anjo. Por isso, que eles iam logo embora. Mas me doía na alma vê-los indefesos. Minha mãe coitada, nem falo. A pobre ficava trancafiada dentro do quarto horas e dias a chorar pela perda. Nem rezava mais... Meu pai parecia um bicho bruto a reclamar dela. E sequer uma gota nos olhos pelo filho.

A morte dos outros me ensinou a viver. Aprendi a conviver com a morte. Nunca me assustei com ela. Bem sei que ela vive – a morte tem vida própria – e me ronda dias e noites. Desvendei que ela é cínica, se reveste de várias faces. A miséria é uma delas, a outra, é a falta de esperança e por fim o medo de lutar. Sim, ela engana o homem a permanecer na miséria. Por causa de mamãe, pai resolveu arribar da terra. Botou a gente num pau de arara e rumou pro Ceará. Lá, a gente sofreu a mesma sina de dor e de seca. Mamãe grávida mais uma vez e não resistiu; desta vez ela foi levada juntamente com seu décimo quinto rebento. Agora, sem ela, a fuga para Pernambuco. Por fim, pai retornou para nossa terra. Chega um dia a morte se cansa e deixa a gente em paz e a gente aprende a viver.

Muito nova aprendi a ler. Aos doze ensinava meus irmãos. Aos quinze virei professora. A primeira escola foi a minha casa. Enquanto o povo morria por água; eu definhava de fome e sede de saber. Queria conhecer tudo e sobre tudo; e como pouca gente sabia, inclusive minha professora, terminei por devorar os livros da biblioteca da escola. Li romance, contos, crônicas, poesias; história, geografia, biologia, sociologia, psicologia. Quando não mais tinha o que ler eu passei a escrever. Aí, se deu a grande mudança na minha vida. Com a escrita criei um mundo só pra mim; tudo que sonhei, imaginei como criança passou a ter vida. De pensadora de Rodin à escritora sertaneja. Esta terra que tantos abominavam, passei a vê-la com os olhos da poesia. Vi que a miséria não era a terra, mas os próprios homens. Estes sem perspectivas viviam na cegueira. O véu da ignorância, da incipiência e da falta de estudo os impedia de ver a beleza e riqueza da terra. Aprendi nos livros: a seca ou as enchentes é um fenômeno natural; existe desde que Deus fez a terra. Mesmo que a igreja pregasse a verdade, o povo vivia a espera de milagre na pedra de sal, em São José e outros santos. Nas aulas que dei, mudei a cabeça de muita gente; o sertão passou a ser mais amado. De menina percebi que o mundo estava errado; começando pelos homens e depois pelo que eles haviam feito com a terra. Sim, digo com Gaia e por extensão a mim, enquanto mulher, mãe, nordestina. Desde pequena sonhava mudar o mundo. Ao menos, o mundo do meu lugar. Fui chamada de doida por colegas, por parentes e por meu pai. Este, não se cansava de dizer:

- Você é louca! Mulher foi feita pra viver na cozinha; a cuidar de casa, de filho e de marido. Estudo é pra homem frouxo, que não gosta de trabalhar, como o filho do compadre, esse tal doutorzinho, do coronel Bartolomeu.

Nunca dei ouvido ao que meu pai dizia. Ele sabia que eu era diferente das outras. Eu era a mais nova e sabia que descortinava um novo mundo. Sempre andei na frente feito bengala de cego ou feito enxada de agricultor a desvendar caminhos novos; não adiantava indicá-los pras minhas irmãs; pra quê? se elas não davam ouvido a uma demente. Aos poucos percebi que o povo não arribava mais do sertão. Muitos que haviam partido, agora, estavam de volta. Era gente vinda do Norte e do Sul pra terra de origem. Muitas formas de viver foram criadas. Barragens, açude, irrigação, poços artesianos, cisternas. Era bonito se ver plantações de manga, caju, melão, melancia, jerimum, pinha e até de uva. O Nordeste, assim como Israel, passou a produzir riquezas da terra. Criaram escolas de primeiro e segundo graus. Cheguei à diretora nas duas escolas. Montei museus, bibliotecas, destaquei os talentos locais; muitos jovens só saíam da cidade para fazer o terceiro grau na Universidade do Estado.

Envolvida nas coisas sociais e educativas, não vi o tempo passar. Só eu de solteira em casa; vinte e oito anos de idade; uma grande preocupação para o meu pai. Eu não tinha tempo de pensar em casamento; via em cada aluna, uma filha; em cada aluno o filho que não queria ter de homens como meu pai. Apesar de que, muito homem amolecera os seus corações para comigo, como foi o filho do coronel Bartolomeu. O tal “doutorzinho” de meu pai. Um jovem bonito e inteligente que se formara em Direito. Pro meu pai, nem pensar num desse entrar na sua família. Mas ele queria mesmo era me ver casada. Isso sim, ele queria e faria qualquer negócio. E pior que fez.

Certo dia, eu estava na varanda a ler Madame Bovary numa rede, quando chegou visita à procura de meu pai. De soslaio vi um homem alto, de bigode, chapéu de massa, botas longas, camisa listrada, igualmente caubói. Desceu do carro e seguiu até a porteira. Parecia que meu pai já o esperava, foi soar a palma ele apareceu no janelão todo sorridente. O visitante entrou, seguiu para sala e sentou-se na cadeira de vime. Na rede estava; deitada eu permaneci. Minutos depois, o berro do meu pai. Só falava aos gritos:

- Evaneide! Ô Evaneide! Vem aqui minha filha!

Seguramente, adentrei a sala. Ele me pediu para sentar. E com todo aquele sorriso largo, prazeroso, que ia até ao pé das orelhas. Disse:

- Este é Adãoniram, meu sobrinho; acabou de chegar do Rio Grande do Sul para se casar com você. Amanhã será o casamento. Eu não quero ouvir lamúrias, nem lamentações. Já está tudo pronto, será na igreja do Sacramento, às 9 da manhã. Mandei matar três cabeças de gado e o tocador já está ciente. Pronto pode ir.

Era um sábado, o último dia do meu descanso. Porém, a morte me ensinou a viver.