O Embriagado Beijo Contado

Uma dúzia de amigos, prosas, risadas, discursos e alguns blefes:

– Seisss Papudo!!

Uma mesa de bar e muitas cervejas.

- Gaúcho, desce mais uma gelada!

Esse era o clima da turma de João Pinheiro após a última aula de Direito Tributário. Metade da moçada estava entretida no jogo de cartas, enquanto a outra se deliciava nas crônicas cotidianas da faculdade. Estavam em oito homens e quatro garotas de beleza considerável.

A cerveja ficava rasa no copo de todos com uma rapidez duvidosa, embora a noção do tempo começasse a ficar turva e rodopiante. Era meados de Verão e o calor batia perto dos 30 Cº.

O embriagado era climante, ops...

- Hoje é dia de comemorar, dizia Pinheiro o mais animado da turma.

João então abaixa a cabeça e logo joga o copo de cerveja para longe. Chamando toda a atenção dos olhares curiosos de seus amigos e furiosos dos funcionários do bar. Ele então sobe na mesa.

- Vou lhes contar uma fábula, uma história, ou seja lá o que for, quero o silêncio de todos, mas antes de tudo, Gaúcho traga mais uma.

Com a voz imponente, ele começa:

“O mocinho trajava terno preto, estilo risca-giz, uma camisa azul sobreposta por um suéter preto e complementada por uma gravata, também preta. Expelia um agradável perfume amadeirado, trazia consigo um cabelo bagunçadamente arrumado e dissolvia-se num nervosismo juvenil.”

João faz uma pausa, leva o olhar para o novo copo que alguém lhe deu e toma dois dedos da cerveja gelada, fazendo-o em dois goles, com alguma dificuldade.

“A menina iluminava o cinema com um sorriso resplandecente e de fácil desvelar. Possuía olhos ternos e profundos, detentores de uma luz intermitente que cegava o menino de timidez, a cada vez que este fitava-a por demasiado. Um ar de inocência e um quê de criança, de difícil descrição, impregnava aquele rostinho branco, levemente rosado pelo frio que se fazia. Seus cabelos eram forjados em véu de seda, corados com um castanho claro que surfava em ondas naturais, delicadamente delineadas por Deus.”

Gaúcho, dono do boteco, estava em cólera enquanto os amigos tentavam contê-lo.

- Você vai pagar pelo copo! E não me chame de “Gaúcho” seu filho da mãe...

Pinheiro olha e dá uma risada arrastada, dispara alguns descalabros contra o pobre enraivecido, daqueles que só os bêbados conseguem com tal deselegância e prossegue na sua prosa:

“A voz fora moldada em um agudo abafado, quase rouca, modulada em volume baixo. O corpo? A roupa? Abstenho-me de dizer. Não por serem desmedidamente belos, ou então o inverso, mas por simplesmente, todas as atenções do garoto terem orbitado ao redor daquela face meiga, que lhe despertava raro fascínio. “

“O filme era envolvente e a pipoca descia de nível rapidamente. Mãos salgadas enfim se tocaram.”

“- Sua mão está gelada – Disse a menina.”

“Fundiram-se as mãos e, num movimento inesperado, ela estava com a cabeça em seu ombro, enquanto ele acariciava seu cabelo. Massageava com destreza ímpar, alternando movimentos circulares e verticais contra a raiz. Os dedos penetravam com extrema facilidade por entre os fios de seda. Ao tempo em que olhava hipnoticamente os olhos da moça, até suas pálpebras fecharem, involuntariamente, com o perfeito sincretismo labial.

O filme havia ficado em segundo plano. O rapaz tentava desvendar se aquilo era real ou um sonho. O estampido molhado dos beijos e o calor do sangue inflamando suas bochechas fez a dúvida desvanecer.”

Num lento e natural ato instintivo os dois lábios se encontravam. O filme chegava ao clímax, mas os dois nem se importaram. O cinema emudeceu e o resto ficou envolto em brumas. Ali, agora, havia apenas troca de olhares e beijos arrastados. Um instante místico, em que o tempo foi contado em beijos e o obsoleto “TIC TAC” apenas parou para apreciar. Tudo isto durou pouco...

Os créditos escorreram a tela e as luzes se acenderam. Aí então, eles aterrissaram novamente na sala de cinema. João Olhou seus lábios a perder de vista.

“ O inesperado aconteceu... O dia anoiteceu, mas não seu sorriso, este fundiu-se com o brilho das estrelas e foi eterno naquela agradável noite de primavera tropical. E assim foi o meu melhor beijo".

Todos observaram em silêncio até a última palavra, até mesmo Gaúcho, que agora estava sentado com os olhos freneticamente estáticos, e após esta o silêncio ainda permaneceu.

Os olhares perplexos de todos os integrantes da mesa voltavam-se para dentro de si mesmos. Apreciando o sabor da nostalgia, cada qual declinava o mais suave e inocente sorriso, enquanto as palavras de João Pinheiro ainda repercutiam em suas almas.

ProjetoProsa
Enviado por ProjetoProsa em 06/08/2014
Reeditado em 10/01/2018
Código do texto: T4911508
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