MULHER TODA CORAÇÃO

MULHER TODA CORAÇÃO

Ah, como eu queria ser princesa. Ao menos nome eu tenho: Dayane. Foi minha mãe que me deu. Disse-me que foi de uma que morreu num acidente. Talvez na Inglaterra. Não me lembro! Também não me lembro de meu pai. Aliás, eu tive um monte de pai. O pai da minha mãe era o meu pai. Os quatro irmãos da minha mãe eram meus pais. Esses sim, me davam carinho. Embalavam-me no seu colo. Dava-me presentes em datas festivas. No meu aniversário eu me sentia uma verdadeira princesa. Minha mãe me vestia como tal. Eu inventava até coroa para minha cabeça. Quando fiz quinze anos eu encontrei o meu príncipe. Agora eu me sentia mais princesa ainda.

Fui educada mais pela minha avó, minhas quatro tias, solteironas, do que mesmo pela minha própria mãe. Tive as bonecas mais bonitas. Os vestidos mais belos. Porém, vovó que era muito católica, queria-me freira. Fui batizada, fiz primeira comunhão, crisma. Não perdia uma missa aos domingos. Bem que eu gostava de tudo aquilo. Mas vovó nunca me perguntou o que eu queria nem de que eu gostava. Sempre me deu tudo em demasia. Até mesmo o que eu não gostava. Mal sabia ela que eu tinha encontrado o que elas não podiam jamais me dar. Da igreja o que eu queria mesmo era me casar. Ou seja, realizar o meu afã de princesa. Adentrar a igreja subindo aqueles mil degraus, vestida toda de branco com véu e grinalda ao lado do meu príncipe amado. Eu princesa Dayane e ele, príncipe Carlos.

Carlos, o meu príncipe, deu-me tudo que nem meus tios-pais, nem minha avó, nem minha mãe puderam me dar. Deu-me amor. Profundo amor de um príncipe, a mim, sua eterna princesa. O sonho de vovó escafedeu-se dentro de mim. Desisti de ir para o convento. Do mesmo jeito que fizera uma tia minha. E o primeiro beijo que Carlos me deu desvirginou-me até do sonho de me casar. Adeus fantasias da décima quinta primavera de toda menina. De princesa me transformei Gata Borralheira. E aqui comecei a viver a minha realidade. De princesa a mulher inteiramente coração. Às vezes, decepção!

Da igreja o que me restava agora era só o medo. O medo de me drogar, de me tatuar, de me tornar alcoólatra, de me prostituir. Deus tenha piedade! O sangue de Cristo tem poder! Vai-te pra lá, desconjuro! Mesmo assim sou levada a cometer meus pecadinhos. Afinal, eu sou humana! De Carlos ficou apenas o seu odor nas minhas entranhas, me fez mulher. Agora o meu coração é todo de Fernando. Estou madura e sinto o amor que nunca senti outrora. Fernando é todo carne. Mas enquanto homem distingue-se dos demais. Romântico. Poético. Amoroso. Quase anjo nas palavras, no olhar, no seu jeito de ser. Pegou-me totalmente vulnerável. Desprevenida. Eu estava carente daquela natureza de ser. Um homem inteiro, completo de tudo que eu carecia. Eu era toda metade de mim. Uma quase nada de mulher. Eu delirava a vagar para lugar nenhum. Até quis pular da Ponte de Todos. Doze já deram cabo às suas benditas vidas. De repente, uma luz! O seu olhar penetrante foi como flecha de cupido. Traspassou minha alma juntamente meu coração de mulher mal amada. De mulher preterida. De mulher segundo tempo. De mulher migalhas. Sim, assim eu era. Mesmo casada e mãe de um filho. Fruto da minha demência repentina nas mãos de um crápula. Somos todas loucas! Todas nós vivenciamos esse ínterim de desvario. E essa espécie de animal dito racional sabe muito bem disso. Por isso, somos presas fáceis a comermos do pão que o “nojento” amassa todos os dias com os seus pés de lama ou senão de merda. Até que um dia a casa cai. E não sobra pedras sobre pedras. Mas Fernando me salvou do meu suicídio iminente. Deu-me força, luz e muito amor. Eu me entreguei de corpo e alma. Mesmo assim, não resisti e me suicidei em seus braços fortes. Foi a minha melhor morte. A minha melhor Newton Navarro de onde saltei sem receio de morrer. Executei voo livre e me senti levitar como se eu tivesse uma espécie de asas. Senti-me acolhida por um deus. Ora anjo, ora homem. Quando acordei. Aliás, abri os olhos, estava nos braços de Fernando.

Meu éden, ah meu doce paraíso! Por que meu Deus que a natureza da felicidade é ser tão efêmera? Assim foi com Eva também tem de se comigo? Tão logo a minha mãe soube do meu relacionamento com Fernando, minha avó me esbofeteou; minha primeira tia entregou-me ao meu carrasco; a segunda, aquela que deixou o convento, me colocou a coroa de espinhos; a terceira jogou o madeiro nas minhas costas; e a quarta tia me chicoteava quando eu me cansava com o peso do madeiro. E quando já sobre a cruz recebi o golpe de misericórdia dado pelo meu marido. Meu coração sangrou e eu acordei ensopada de suor. Um medo terrível se apossou de mim. Rezei uma dezena de Ave Maria do rosário, intercalando com Pai Nosso. O inferno de vida que vinha sofrendo me fez ser evangélica. Agora eu não mais repetia aquelas rezas comprida. Fazia a oração que meu coração, meu corpo, minha alma necessitavam. Anos depois não mais curava a minha dor. Passei a ler horóscopo, cartas de tarô. Uma amiga me convidou a uma cartomante. Uma cigana leu a minha mão. Disse-me que seria uma princesa. Disse tudo sobre Carlos. Fiquei abismada quando ela falou do Fernando. Mas como ela sabe tudo isso? Fiquei foi com medo. Como ela sabe tanta coisa sobre nossa vida e vive essa vida miserável? Por que não melhoraria de vida? Isso é conversa fiada. Prefiro viver minha vida normal. Prefiro que meu coração seja dos meus amores ocultos.

Agora, quero o amor dos livros em Willian Shakespeare com o belo Romeu e a meiga Julieta; quero Machado de Assis com os seus triângulos amorosos em Dom Casmurro; quero Fernando Pessoa romantizado em Ofélia; quero Castro Alves para viajar em seu Navio Negreiro; quero Carlos Drummond de Andrade com o seu E Agora José? e tantos outros; como também quero Manoel Bandeira para me levar para sua Pasárgada e nunca mais voltar para minha realidade. Afinal, sou uma mulher toda coração.

Do Livro CONTOS FEMININOS E OUTROS de Emecê Garcia - NATAL / RN - 2014.

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