OLHA MINHA BEBÊ, GENTE

Quando nasci, mamãe separou-se do meu pai. Ela trabalhava, eu ficava sozinha. Não me lembro de quem cuidou de mim antes, só sei que aos quatro anos eu fazia tudo sozinha e muita coisa de gente grande. Arrumava a casa, cozinhava, lavava e passava; minha babá tinha a cara quadrada, brilhava e chiava muito quando chovia. Aprendi algumas coisas com ela, mas muitas inúteis e sem graça. Nunca ouvi falar da minha avó nem do meu avô. Mamãe trabalhava feito uma condenada pra me dá de comer e algumas coisas: roupas, calçados, relógio, celular, tablet, noteboook, muitas bijuterias (pulseira, broche, pente, anel, etc.) e escola. Disso ela não abria mão: educação. Eu tinha de estudar pra ser gente na vida. Fazia das tripas coração para me botar nas melhores escolas. Nunca me faltou um lápis; de tudo ela me supria, inclusive carinho e muito amor. Pense numa mãe dedicada à filha. Assim era a minha mãe. Uma mulher queimada do sol, pequena, mas forte e trabalhadeira. Costurava, passava, lavava, limpava; era diarista. Saía às cinco da manhã, voltava às vinte horas. Às vezes, me pegava com as tarefas da escola; às vezes, a dormir sobre os livros. A minha babá ficava na sala a falar sozinha; ora sobre sexo, ora sobre esporte; mas gostava mesmo era de violência, de guerra, de assalto, estupro, pedofilia, traição, corrupção. Ainda dava prejuízo no fim do mês. Presa aos estudos não tinha tempo para ouvir aquela fala chata e repetida; todo dia as mesmas desgraças.

Ganhei um computador da minha mãe; agora, as tarefas da escola eram feitas nele. Uma ferramenta excelente para meus estudos. Meus trabalhos eram sempre bem avaliados. Aprendi a mexer na máquina sozinha; a vontade era tão grande, logo estava digitando textos e mais textos. Aprendi a diferença entre hardware e software; formatar, instalar, copiar, colar, salvar. Era só ler o manual e esmiuçar o tutorial de cabo a rabo. Coisa que muito pouca gente gosta de fazer. Prestei vestibular para Ciências Jurídicas e passei numa boa classificação.

As notícias, os jornais, os livros, as pesquisas, os filmes e jogos eram todos diretamente no computador. A televisão há muito perdeu o sentido; foi para o conserto e não mais voltou. Sequer eu senti a sua falta. Estava cansada do seu monólogo interminável e chato. Mamãe mal sentava para assistir; estava sempre ocupada com algo. A mente dela era fantástica. Lembrava-se de tudo e sabia de muitas coisas que eu lhe perguntava. Achava incrível a minha mãe, eu a admirava demais. Uma mulher elétrica e eclética. Quando não trabalhava ia para academia, pra praia, pra piscina, para o shopping. Adquiri o mesmo dinamismo dela mais voltado para os estudos. Mamãe não mais quis se casar, apareciam uns paqueras; de quando em vez saía para o cinema ou a praia; nada muito sério só ficava na amizade. Assim, parecia mais salutar para ambos.

Nas horas de descanso dos estudos, desopilava com jogos eletrônicos do computador, ou assistia a filmes via internet. Eram jogos interativos com pessoas do mundo inteiro. O pior que eu passei a gostar, nem tanto do jogo, mas das interações. Conhecia muita gente da Alemanha, da França, da Inglaterra, do Japão e até da China. Fazia isso mais para treinar o idioma desse povo. Mas, geralmente todos terminavam no inglês. O dito jogo online que eu mais gostava era Audition – um jogo de dança –, onde conheci um japonês. Convidou-me para dançar e, ao invés disso, confabulávamos. Eu no meu inglês fajuto e ele também. Parecia que, assim como eu, ele usava a tradução automática do Google. Dessa conversa, dias depois, nos víamos pelo webcam. Poucas palavras e muitas expressões de sentimentos, que não precisava de tradutor. Apaixonei-me pelo “japona”; ele também não me precisou dizer. Estávamos deslumbrados um pelo outro literalmente.

Durante o dia fazia Direito na Universidade; à noite, cursava inglês. Estava no décimo período; no final apareceu um intercâmbio pros Estados Unidos ou pro Japão. Estágio de três meses eu teria de escolher; não deu outra, fui direto pras terras do oriente. Tudo muito certinho, eu me formei num dia, no seguinte, viajei.

Brasil – Tóquio. Foi tudo muito rápido! Entrei no avião era manhã; saí dele era noite. Menos de dez horas de voo. A diferença de fuso horário me deixou maluca. Foi como se tivesse dado voltas ao mundo sem sair do lugar. Hospedei-me na casa da jovem que foi pro meu país. Uma senhora maravilhosa. Desvendo que o mundo é mundo em qualquer lugar do planeta. Minha mãe não era diferente da senhora Yama. As pessoas se diferem na pele, na língua; menos no coração e na cabeça; Dona Yama morava no Japão, mas nascera na Inglaterra. Com isso seu inglês foi muito mais instrutivo pra mim; enquanto falávamos inglês fluentemente, vivíamos o dia a dia da língua japonesa. Assim, eu assimilava dois idiomas num só estágio. Fantástico!

Há dois dias, não dançava online com meu amado; ele deveria está louco; infinitas ligações registradas; eu também não mais aguentava; mas as circunstâncias me levaram a isso. Ele iria compreender, acima de tudo, com a minha surpresa. Guardei esse momento por muitos dias; queria viver intensamente essa realidade que o virtual, a inteiração, me proporcionara. Estava ansiosa, não via a hora de convidá-lo para uma dança real, no melhor clube de Tóquio. Queria intensamente abraçá-lo, beijá-lo, me jogar em seus braços e não mais deixá-lo sair da minha vida.

Fiz tudo meticulosamente como uma detetive. Escolhi a cidade, o bairro, o codomínio e até o apartamento próximo ao do meu amado: a residência da Sra. Yama. Vesti-me belamente, conforme a mamãe me elogiava. Na hora de praxe, lá estava ele, online, a me esperar. Fiz questão de ligar o webcam; qual não foi a minha surpresa; o garoto quase desmaiou sobre a cama; extasiado de tanto prazer, pareceu perder a voz. Eu estava em quase semelhante situação, mas fui mais forte e disse:

- Hoje a nossa dança vai ser real, amado meu. Estou aqui do seu lado no apartamento 2014; na residência da Senhora Yama.

O garoto deu um salto feito louco a despertar dum desmaio; e não mais o vi na telinha do Notebook. Num segundo, o toque da campainha. Aí, eu perdi os meus sentidos. E nem português, nem inglês, nem japonês; só a linguagem universal da qual fala o coração; sentimos o silêncio mais puro e arrebatador entre dois entes que se amam.

Fomos a um clube real, a uma dança real, aos sentimentos mais reais. Foram os três meses mais curtos e mais longos de toda a minha existência. Yamamoto foi o homem virtual mais real de toda a minha vida, que dura até então.

Hoje, Yama com quinze anos é o meu maior orgulho. A minha pérola preciosa. O meu sol do oriente sempre a brilhar na minha vida. Cresceu rápido, mas ainda continua sendo a minha bebê. Postei as fotos dela no Facebook. Fiz um buque do dia que ela nasceu até hoje; data do seu aniversário.

- Olha minha bebê, gente! Não é uma gracinha, a minha bebê?! Não é?! Esta sou eu e ela no playground. Ali também somos nós duas na piscina. Esta é no shopping na praça de alimentação. Eu amo a minha filhinha! Eu não sei o que seria sem a minha bebê! Amo, amo, amo, amo...!!!

Do Livro CONTOS FEMININOS E OUTROS de Emecê Garcia - NATAL / RN - 2014.

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