RIOS URBANOS

O dia chegava manso, controlado, opaco. Os pássaros faziam os seus experimentos de canto espalhados e invisíveis pelas árvores e arbustos. Os saguis já haviam chegado há pouco gravitando pelos galhos e telhados que se complementavam. De longe, só o escutar me dava alento e frescor para um novo dia. O que me espera neste novo dia? Quais são os meus planos? Os tenho, certamente, pretendo realizá-los, mas é uma aventura saber se conseguirei ao menos completar este dia íntegro em meu caráter e feliz com a minha pessoa. Estes são sempre os meus objetivos para todo dia. As táticas e estratégias são formuladas muitas delas no dia ou semana ou mês ou mesmo ano anterior, mas os efeitos, não há dúvida, são motivados pelas causas do que fiz em algum momento no passado recente ou longiquo.

Assim, permaneço na cama mais um pouco aquecendo o meu espírito em sua vontade, para encarar mais um dia de trabalho, de relações, de descobertas, de aprendizados. Ah! como seria bom poder reconstruir alguns daqueles dias chuvosos de minha primeira infância quando era tão bom poder ficar em casa ao invés de ir à escola. Eram poucos estes momentos que careciam da autorização de minha mãe que combinava com a concordância de meu pai. Este sim, não havia chuva ou sol que o impedisse de sair à rua para ganhar o nosso pão de cada dia. Ali ele já era perdoado e ajudado por Deus em seu esforço de ser um homem bom, responsável e protetor de nossa família. E é lembrando da porta batendo à saída de meu pai para mais um dia de trabalho, enfrentando a chuva que caía e se avolumava como um mínimo mas caudaloso rio urbano na parede do meio-fio que servia como margem cujo sulco era o paralelepípedo escorregadio e que desaguava no ralo mais à frente que tragava os nossos muitos barquinhos de papel que já lá chegavam em seu destino final, estropiados, mulembos, encharcados e se viravam, se contorciam num último espasmo antes de serem tragados por entre as grades para um fundo escuro, revolto e barulhento pelas águas nervosas da chuva.

A vontade de meu espírito ao lembrar dessa cena de meu pai saindo para o trabalho no meio da chuva e dos córregos urbanos artificiais, reassumia-se por inteiro na responsabilidade da lida que me esperava para esculpir o meu caráter no dever de cada dia. E, assim me levanto disposto a encarar o dia opaco que já começava a me brindar com os primeiros pingos de uma chuva prevista e desejada. É certo que, procuraria me distrair nas ruas em busca dos meus riozinhos urbanos.

Lut
Enviado por Lut em 05/03/2014
Código do texto: T4715705
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