O Morcego Brincalhão

Era uma noite quente de verão. Dessas em que a gente deixa a janela aberta, a cortina afastada e reza um pai-nosso para aparecer uma brisa mais fresca . Moramos em área rural , que , via de regra, é menos quente que na cidade por ser mais descampado, sem casas próximas. Mas ultimamente o calor está muito forte em qualquer lugar. Quando fomos dormir, meu marido, eu e minha sobrinha de oito anos, já passava das onze horas. Minha sobrinha Dani, passava os finais de semana conosco. Ela adorava brincar no quintal com os cachorros, empinar pipa, andar de trator, meu marido é agricultor e em nossa propriedade planta soja no verão. Ainda não temos filhos. Enquanto isso praticamos a maternidade e a paternidade com ela. Gostamos muito de brincar e estar junto dela. Dani é filha única de meu irmão e tem medo de dormir sozinha no quarto que fica ao lado do nosso. Assim, pegamos o colchão do quarto e trazemos aos pés da nossa cama para ficarmos juntos. Dois ou três num quarto com aquele calor não fazia muita diferença, mas trazer três ou quatro bichos de pelúcia para dormir junto era demais. Não eram simples cachorrinhos, ursinhos, coelhinhos. Eram cachorrões, ursões e coelhões. Eu ficava sufocada só de ver aquela montanha de pelos em volta dela. Sem contar com o seu inseparável “tôca”. Não está errada a escrita é assim mesmo. Um cobertor que usava desde que nasceu e agora está um "fiapo”, mas continua a dormir agarrada.

Dani, está muito quente. Como é que você aguenta!

Eu estou bem , “Mili”. Esse era o apelido pelo qual ela me chamava sempre. Você não vai fechar um pouco a janela? Acho quer está ficando frio aqui.

Meu Deus! Pensei . Essa menina não pode ir morar em Curitiba que morre de hipotermia.

Quando refrescar o quarto eu fecho as janelas. Como é que iria refrescar o quarto se estávamos dormindo numa verdadeira fábrica de cobertores? Mesmo com as duas janelas do quarto abertas, mesmo morando em área rural, mesmo a casa sendo um sobrado, o ar não circulava.

Onde está você, perguntei, esperando que as cortinas começassem a balançar e o vento batesse de leve em nossos corpos sedentos por um sopro de ar.

Eu não conseguia dormir, me virava de um lado para outro da cama. Meu marido estava cansado e logo pegou no sono.

A dona esquimó, coberta até a cabeça por uma camada de pelos, patas e bigodes estava muito quieta. Levantei várias vezes para verificar sua respiração. Confesso fiquei com medo que morresse asfixiada por tantas pelúcias.

Procurei afastar esses pensamentos e me concentrar em dormir e aliviar o cansaço e o calor.

Não sei quanto tempo dormi. Acordei meio aturdida, com um barulho parecido com as pás de um ventilador sobre as nossas cabeças. O primeiro pensamento que me veio foi que começou a ventar e o barulho seria a cortina batendo contra a parede. Me sentei na cama procurando meus chinelos e senti uma brisa bem perto de meu rosto. Um misto de medo e curiosidade me invadiram e no escuro acordei meu marido.

Amor, acorde. Acho que está acontecendo alguma coisa estranha aqui.

Meu marido resmungou que eu tive um pesadelo, virou de lado e continuou a dormir.

Fiquei quieta um momento para identificar o que estava acontecendo e novamente senti o vento mexendo meus cabelos e o barulho mais forte. Meu coração disparou e tiver a certeza de que havia mais alguém ou alguma coisa no quarto além de nós.

Acorde, amor, acorde. Tem alguém no quarto. Estão mexendo em nossas coisas.

Relutantemente ele esfregou os olhos, sentou na cama e perguntou o que estava acontecendo. Pedi a ele que ficasse quieto e escutasse. Ele escutou atentamente e se abaixou quando o barulho passou perto de suas orelhas. Estávamos até então no escuro, não temos abajur e não tive coragem de levantar e acender a luz .

É verdade, ele disse. E já sei o que é.

O que é perguntei nervosa?

É um morcego.

Um morcego? Perguntei incrédula. Não pode ser. Como ele entraria aqui.

Esqueceu que as janelas estão abertas? O vento deve ter aberto a cortina e ele entrou.

Mas o que ele veio fazer aqui dentro? Novamente tivemos que nos abaixar porque ele ou qualquer outra coisa estava novamente dando um voo rasante sobre nossas cabeças.

E a Dani? Será que é morcego hematófago?

Será que veio atraído pelo nosso sangue?

A Dani está no chão.

Dani acorde. Venha para a cama conosco.

Calma, disse meu marido. Normalmente os morcegos comem insetos e frutas, poucas espécies são hematófagas. Ele deve ter entrado por engano. No telhado da nossas casa moram morcegos. Eles entram pelas aberturas no beiral da casa e dormem durante o dia e saem a noite para se alimentar.

Pelo barulho das asas deve ser gigante, disparei.

Dani acorde. Fui até o pé da cama e sacudi minha sobrinha. Como estava escuro não a encontrei de imediato devido a camada espessa de bichos de pelúcia. Pelo menos não corre o risco de ser mordida. Até o morcego a encontrar já estará cansado.

Ela acordou sonolenta com minhas sacudidas e não entendendo nada perguntou se estava na hora de acordar.

Está muito escuro ainda Mili. Deixa eu dormir mais um pouco. Não tenho aula hoje.

Dani não é hora de acordar é hora de fugir. Venha para a cama conosco. Teu tio acha que tem um morcego sobrevoando o quarto e tentando aterrissar.

O quê? Um morcego? Mili por favor tenho medo de morcegos. Não deixe ele grudar em meus cabelos e me transformar em vampiro.

De um pulo só se jogou na cama mas não veio sozinha. Não sei como conseguiu jogar todos os bichos de pelúcia sobre nós. O urso atingiu meu marido na cabeça . Ainda fazia muito calor e agora éramos seis na cama. Meu marido disse que era para ficarmos quietas que ele iria acender a luz para identificar o invasor. Ao acender a luz percebemos que realmente era um morcego e dos grandes. Por isso o barulho de suas asas parecia um ventilador.

E agora? Perguntei. Como vamos tirar esse bicho daqui?

Vou afastar as cortinas e deixar as janelas livres para que ele possa sair.

Não tio. Não chegue perto que ele te ataca. Disparou a Dani. Ele é enorme.

Não quero ficar aqui. Ele vai nos morder. Pegou um de seus bichinhos e começou a balançar no ar.

Tive uma ideia, disse meu marido. Me empreste o teu urso Dani.

Para que você quer o meu urso?

Eu quero tentar derrubar o morcego utilizando o teu urso.

O que? O Bili não. Você quer contaminar meu urso com esse bicho. Vai que ele ataca e transforma o Bili em vampiro?

Dani é só um bicho de pelúcia, respondi. Não vai acontecer nada com ele, eu prometo. Depois eu o lavo para você. Tudo bem? O tio pode tentar tirar o morcego do quarto para podermos dormir?

Você promete que lava ele depois? Então eu deixo. Mas tio não bata com muita força para não machucar o Bili.

Tudo bem Dani. Eu só quero derrubar o morcego para poder pegá-lo e soltá-lo.

Deitem e se cubram com o lençol caso eu o acerte e ele caia na cama vocês não correm o risco de serem atingidas .

Obedecemos imediatamente. Pelo lençol víamos a sombra do morcego fazendo círculos pelo quarto parecendo um daqueles aviões de brinquedo que fazemos girar sobre nossas cabeças amarrados num cabo de aço. Víamos também a sombra de meu marido tentando acertar o morcego com o Bili. Ele pulava, rodava o Bili na mão e nada . O morcego parecia imune as tentativas de derrubá-lo e continua a voar em círculos. O calor estava aumentando embaixo do lençol, o ar estava pesado , estávamos ficando sufocadas. Resolvi tirar a cabeça para fora e dei um grito ao perceber que o morcego voou em minha direção . Parece que estava esperando eu sair do esconderijo para atacar. Voltei para baixo do lençol e meu marido ficou em pé na cama para tentar atingi-lo. Mas o morcego era hábil e rápido e não tinha dificuldades em se desviar dos golpes aplicados. De vez em quando investia sobre meu marido fazendo-o pular da cama e se abaixar. Tive a impressão que o morcego estava se divertindo com a situação e com a nossa cara de espanto. Minha sobrinha já estava chorando quando meu marido teve uma ideia:

Sacudam o lençol. Façam com que ele flutue pelo ar. Talvez o morcego se confunda com o barulho e venha em minha direção.

Fizemos isso com nossa última golfada de ar. O morcego desviou do lençol e voou na direção do meu marido que se aproveitou e bateu nele com o Bili. O morcego perdeu o controle e bateu na cortina caindo no chão. Rapidamente meu marido pegou o tapete do quarto e colocou sobre o morcego envolvendo-o antes que se recuperasse da queda. Pegou o morcego envolto no tapete , colocou-o na sacada do quarto e fechou a janela. Ficou observando até o mesmo se recuperar e alçar voo novamente para a liberdade e para o frescor da noite. Minha sobrinha descobriu a cabeça e perguntou:

Mili terminou? O morcego não vai voltar?

Não, Dani. O morcego não vai voltar . Eu prometo.

Voltamos a dormir todos na mesma cama. Minha sobrinha não quis mais dormir no chão apesar da companhia de seus bichinhos, que agora não eram mais seis e sim cinco porque o Bili iria tomar banho e ficar de quarentena para ver se não se transformava em vampiro.

No dia seguinte fui à cidade e comprei um ventilador de teto. Para não termos surpresas não dormimos mais com todas as janelas abertas e passei a deixar o Bili no nosso quarto porque não sabemos quando um morcego brincalhão irá nos visitar novamente .

Catleya
Enviado por Catleya em 05/02/2014
Código do texto: T4679035
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