Caso Médico
“Droga! Ser obrigada a viajar para o aniversário da vovó. Deixar para trás este final de semana que seria tão maravilhoso. Conviver com aquele bando de primos chatos e ignorantes. Gente da roça que não tá nem aí pras coisas que eu curto e que nada compreendem do meu universo. Vai demorar demais pra chegada do domingo e voltar para casa”. Era assim que Marcela considerava a viagem para comemorar com os parentes o aniversário da avó.
Mesmo com os detalhados planejamentos feitos por Marcos, programando tudo para que estivessem na estrada, no máximo às cinco horas da tarde, já eram sete e meia da noite, quando seus dedos acionaram o controle remoto, abrindo o portão da garagem. O humor de Gisela também não estava dos melhores. Receava pelo que pudesse acontecer na casa dos sogros. Adorava viajar, mas não se sentia à vontade junto ao povo do marido. E havia aqueles que costumavam exagerar na bebida e, depois de alguns goles, até se tornavam inconvenientes.
“Tomara que dê tudo certo e valha a pena os mil e quatrocentos quilômetros entre a ida e a vinda”. Assim desse jeito, cheia de temor que a viagem desandasse e ao mesmo tempo na expectativa de que tudo fosse bem legal, que ela se punha, como co-piloto do esposo, ao seu lado, com a pretensão de dormir o percurso todo.
Marcos, ao contrário, sentia-se feliz. Nem se incomodou, como quase sempre costumava ocorrer, com os furos dos planos ocasionados pelos atrasos na saída do escritório, por parte dele, e do hospital do lado da esposa. Ansiava por abraçar os velhos, celebrar com eles e demais familiares, os setenta anos daquela que o gerara e criara com tanto carinho e cuidado.
O trânsito da hora do rush, que já não costumava ser agradável em nenhum dia útil da semana, na sexta-feira havia se tornado infernal. Foi desse jeito , arrastando-se a menos de dez quilômetros por hora, que seguiam, em ritmo de procissão de idosos, rumo à rodovia. “Se continuar desse jeito não dará para tomar o café da manhã bem cedinho com papai e mamãe”. Foi o que refletiu Marcos já um pouco ansioso com a lerdeza dos automóveis.
Eram mais de nove horas, nuvem alguma no céu e havia uma lua linda, toda redonda, quando se viram na estrada. Do banco de trás não era de se esperar mesmo nenhuma palavra. Absorta em seus pensamentos a garota de doze anos seguia, olhos cerrados, incomunicável.
Num rápido olhar para o lado Marcos havia notado que Gisela também adormecera. Ligou então o som e nele, preparado com toda certeza de antemão, o CD da dupla sertaneja já estava a postos. Olhos fechados mãe e filha, plenamente acordadas e com ódio mortal daquele tipo de música, reforçaram o fingimento de que estavam apagadas.
Após uma curva mais fechada deparam com aflitos pisca-alertas tremeluzindo à frente. Um homem a balançar freneticamente um pano, parecendo ser um lençol cinza, no acostamento, gesticulava para que reduzisse a velocidade e parasse. Havia poucos veículos. Deviam ter à sua dianteira, no máximo, entre automóveis e caminhões, uns dez.
Estavam bem próximos da tragédia, com certeza, ocorrida minutos antes. Alguns homens e dentre eles uma mulher, com jeito de desesperada, faziam tentativas para retirar alguém de dentro do carro azul e com o capô enfiado na trazeira do caminhão. Marcos saiu para observar melhor. Viu bem quando a tal dona que se debatia ao lado do automóvel virou-se para trás e veio, meio correndo, meio andando acelerado, roupa suja de sangue, passando pelos carros a indagar se havia ali algum médico.
Deu graças a Deus de a mulher e filha estarem dormindo, mas por via das dúvidas, pois podia ser que as duas ou, uma delas despertasse com a indagação aflita da tal mulher, parecendo histérica, ruminou então, entre os dentes, para dentro do veículo: “aqui não tem nenhum médico”.
Na ausência ainda de ajuda, ou da Polícia Rodoviária, a fila, exceto com os três primeiros que se mantinham no socorro, começou a se movimentar. Ao passarem pelo acidente Gisela, mesmo sem estar adormecida, optou por não abrir os olhos. Marcela, ao contrário, tinha-os como dois pontos de luz bem acesos.
Chocada com a recomendação paterna e a aquiecência da mãe, que traía assim o juramento de médica, ela pôde ver, bem de pertinho, a cara contraída de dor, daquele homem preso às ferragens. Custou demais a dormir. No banco da frente Marcela também teve dificuldades em conciliar o sono. Isto aconteceu bem depois de haverem feito a necessária e tradicional parada no meio do trajeto.
Jamais aquele acidente tomou parte em alguma conversa na família. Era como se o passeio tivesse se resumido ao engarrafamento gigante na saída, ao tempo agradável de convivência e festa para o casal e o retorno sem nada digno de nota. Obviamente que enfadonho demais para a filha.
Mas aquele esgar, aquela expressão de desespero entre os ferros, mais de quinze anos passados, nunca se distanciou de Marcela. Não poucas vezes sonhou com ele e nesses pesadelos o rosto se virava para ela, num desesperado pedido de socorro, enquanto dois longos braços lançavam-se da janela em sua direção. Nessas noites acordava trêmula, suando aflita.
Optara, como a mãe, pela carreira médica e já vivia a experiência intensa das vésperas da formatura. Há um mês namorava Plínio, colega de turma da faculdade. “Mãe, meu namorado disse que o pai dele foi professor da Escola, quando você estudava por lá. Será que foi aluna dele?” “É verdade? Qual sobrenome ele tem?" "É o mesmo nome do pai, só que com um Júnior no final. O professor se chamava Plínio Assis Sampaio Beaugeste”.
"Não acredito! Que mundo pequeno. Adorava o pai dele. Foi nosso melhor mestre. Aliás, escolhido por unanimidade, como paraninfo. Um grande médico. Fez-nos um discurso maravilhoso sobre a vocação de sacerdócio na medicina. Nunca mais tive notícias dele. Tomara que o filho também seja como o pai”.
Sem dúvida que aquele fato auspicioso ajudou, por demais, a criar um encantamento na relação sogros e genro. Animada com aquilo Marcela, algum tempo depois, disse à filha que convidasse Plínio para jantar com eles. Iria preparar, seria surpresa, algo bem gostoso.
Comida apetitosa e conversa mais que animada. Gisela contava casos do tempo de faculdade nos quais seu professor querido estava envolvido. De supetão, Marcela fica séria e faz a pergunta: “Papai, em que data vovó fazia aniversário e em que ano ela nasceu?” Marcos, sem se dar conta da importância dada pela filha à questão tão prosaica, respondeu, não sem tomar o gracioso cuidado de acrescentar o tamanho da saudade que sentia dela, falecida poucos dias após aquela festa bonita dos setenta anos.
“Nossa, que tremenda coincidência, o Professor Plínio acidentou-se exato na noite anterior ao aniversário dela e na mesma estrada em que viajávamos para a festa, na cidade em que você nasceu. E o Plínio, na época com a minha idade, também estava no automóvel, não foi amor? Ele e a mãe, não sofreram praticamente nada, mas seu pai morreu depois de ficar por mais de uma hora preso dentro do carro, à espera de um socorro que nunca chegou”.
Era como se um bloco de granito houvesse despencado sobre a mesa. O ambiente pesava demais e Plínio manteve no ar o assunto: “Pois é, tamanha coincidência. Pode bem ser que tenhamos estado, em algum momento, bem próximos uns dos outros naquela noite fatídica, sem saber o que nos aconteceria logo após e que a gente estaria, anos depois, juntos.”