QUE SE DANEM!

O Gerente, furioso, brandia um cartão de ponto, à altura da cabeça, no salão em que fervilhavam os empregados, a maioria, auxiliares de escritório.

Era um homem formado em Administração de Empresas e se julgava herdeiro direto de Taylor e Fayol, com um pouco do DNA de Henry Ford.

Em decorrência disso e, também, de algum conhecimento das tramóias das Ciências Econômicas, tomou como alicerce de sua atuação funcional o aforismo “Tempo é Dinheiro”. Assim, considerava que o objetivo maior de uma empresa teria que ser “o lucro ilimitado”, valendo o posicionamento maquiavélico de que “os fins justificam os meios”.

Havia deixado sua sala disposto a resolver, definitivamente, os entraves com os atrasos dos funcionários, em especial, de um protocolista, o “Seu” Abdias.

Retirante dos sertões do Piauí, Abdias era conhecido nas bandas da Estrutural por “Bidinho”. Esse era o apelido que recebera, antes mesmo do susto com a água benta, bem no meio da testa, na pia batismal, com menos de dois meses de vida.

Como, lá pelos cafundós de Picos, morava perto de uma casa de esquina em que funcionava uma das congregações da Assembléia de Deus, acabou por ser convencido a fazer parte daquele grupo seleto. Pouco tempo depois, já andava pelas ruas conduzindo, embaixo do braço, uma Bíblia, daquelas inscritas com letras douradas na capa e no dorso. Com o tempo, foi assumindo ares de pregador promovendo-se a si mesmo como Pastor Abdias. O próprio nome facilitava a proposta...

Com vinte e cinco anos, aos trancos e barrancos, havia conseguido concluir o Curso Técnico de Secretariado e resolveu bandear-se para um lugar onde tivesse possibilidade de conseguir um bom emprego.

Solteiro, sem compromissos maiores, acabou por dar com os costados em Brasília. Aqui começaria uma nova vida, arranjaria o emprego almejado e certamente prosseguiria em direção ao sucesso.

Auxiliado por um ex-colega de escola foi procurar um lugar para morar, de acordo com os recursos que poupara durante o tempo que se dava ao trato de bodes e cabras no sítio de um conterrâneo, lá em Picos. Na Estrutural achou o que estava de conformidade com o seu bolso.

Não demorou muito estava instalado em um quarto mobiliado para solteiro, num barraco de uma velha resmungona, viúva de um paraíba manco e cachaceiro, que dera o último suspiro asfixiado pelo engasgo com um gole mais generoso da dita manguaça.

Meses depois, por interferência de uma agência de empregos, conseguiu entrevista em um escritório de cobranças localizado bem em frente do “Pátio Brasil Shopping”. Fora atendido pelo próprio dono, um homem de negócios, também proprietário de um hotel-pousada lá pelas bandas da GO-118. Esse andava atrás de um gerente para assumir o escritório, por ter interesse em gerir as atividades do hotel, onde se sentia melhor, pelo contato com os hóspedes e turistas.

Um ano após, Bidinho estava a pleno, integrado nas suas tarefas, cônscio dos seus deveres e contando com a aprovação de todos os demais companheiros de trabalho. Era protocolista e cuidadoso guardião dos documentos e arquivos do escritório.

Mas, como nem tudo são flores, “Seu” Abdias tinha uma pedra no sapato. O transporte da Estrutural para o centro do Plano Piloto era o que poderia haver de pior nesse mundo de Deus. Por muitas vezes se pegava praguejando, mesmo com a Bíblia embaixo do braço, pelo sacrifício de se manter por horas esperando um ônibus que parasse no ponto, com um lugarzinho, ao menos, para que pudesse chegar a tempo, no trabalho.

Aquilo era um verdadeiro inferno. Os ônibus quase nunca paravam; já saíam de Taguatinga lotados, com os pobres passageiros mais espremidos do que sardinhas em lata. Como não havia como entrar mais ninguém, os motoristas passavam sem dar a mínima para o montão de gente amontoada nas paradas.

Já havia perdido a conta das vezes que, conseguindo lograr a disputa e embarcar num daqueles ônibus, um pouco mais adiante ter que desembarcar, com todo mundo, em razão de um enguiço grave ou da quebra de alguma peça importante. Pronto! Mais uma dose de suplício, embaixo de sol, chuva, vento ou frio...

Como se não bastasse, aqueles ônibus eram o que de pior poderiam existir nas linhas que passavam por ali. Velhos, sujos, fedidos, com colunas e balaústres frouxos ou quebrados, bancos sebosos, enchendo as narinas das pessoas com aquela fumaceira desgraçada, de óleo diesel queimado.

Com o incentivo do governo e a cupidez bancária, impostos foram suprimidos e os financiamentos foram facilitados, com prestações a perder de vista. Era propósito das autoridades promover as pessoas miseráveis, de um dia para o outro, para o estamento da “Classe Média”. Na ótica daquela gente, o automóvel era o parâmetro para isso.

Com essa medida posta em prática, quase todo mundo poderia ter um carro. Novo, semi-novo, usado, velho, caindo aos pedaços, não importava e, como conseqüência, em pouco tempo, as ruas e avenidas de Brasília e das cidades do Entorno se tornaram um inferno, com o trânsito congestionado, como num ensaio desastroso para o rápido ingresso no mesmo “destino de São Paulo”.

Mas, enquanto não aparecia um ônibus com lugar disponível, aproveitava o tempo para abrir a Bíblia e começar a ler, em voz alta, algum versículo escolhido ao acaso. Daí para a pregação entusiasmada era um pulo. Nem queria tomar conhecimento dos narizes torcidos ou dos ares de mofa que a maioria dos passageiros desassistidos davam em resposta.

Ao contrário, parecia embevecido ao ver a expressão de uma senhora sem pintura, de cabelos amarrados e vestido até o tornozelo, que ouvia, contrita, a louvação costumeira. Pelo jeito, sabia que se tratava de uma “irmã” de fé e isso era o que bastava. Era o suficiente para disparar um sem número de “améns” e “aleluias” enquanto não chegava uma porcaria de ônibus que parasse ali com algum lugar disponível.

O dono do escritório de cobranças há alguns meses conseguira o gerente de que necessitava e passou a dar mais atenção ao seu hotel-pousada, deixando por conta do novo auxiliar a administração dos negócios referentes às cobranças e tratos jurídicos com devedores e credores.

O novo gerente, cônscio das suas responsabilidades e, querendo mostrar serviço, empurrado pelo seu baú de teorias, tratou de aplicá-las e considerou que o protocolista poderia ser um belo ponto de partida para dar um novo ar de ordem ao ambiente.

Como considerava o tempo um componente vital para o sucesso empresarial, entendia que qualquer desperdício se traduziria em retardo nas providências das atividades-meio e isso afetaria o objetivo final, o lucro.

Examinando os cartões de ponto, para conferir a freqüência e a pontualidade dos funcionários, observou que o que mais incidia em atrasos era, justamente, o protocolista, o “Seu” Abdias. Para cobrar um paradeiro nesse despropósito, cuidaria de chamá-lo às falas; faria isso imediatamente e, à vista dos demais, para que se sentissem, igualmente, admoestados.

Em seguida, levantou-se e, abruptamente, invadindo o salão do escritório, brandindo o cartão de ponto do protocolista, abriu o verbo, passando uma descompostura no servidor pela constante chegada atrasado para o trabalho.

Esbravejando fez questão de deixar claro que, se não houvesse modificação naquele procedimento, não exitaria em despedir, “por justa causa”, qualquer reincidente. Tinha carta branca do Diretor.

Dito isso, deu às costas, bateu a porta e sumiu no interior do seu reduto. Sentou-se e enfiou o nariz numa pilha de papéis e processos cujas pendências decidira solucionar o mais rápido possível. Quem sabe se O Diretor não lhe convidaria para atuar, também, lá no hotel-pousada? Aproveitaria para desfrutar, com a família, aquele ambiente temático e, principalmente, a piscina de água aquecida, azulzinha...

Naquele dia, o mundo havia desabado sobre a cabeça de Bidinho. Sabia que o trânsito desgraçado de Brasília e a porcaria de transportes públicos oferecidos pela cidade jamais iriam permitir a quem, como ele, morasse naquele lugar desassistido, chegar a tempo de marcar o cartão de ponto na hora certa.

Sabia que muitos companheiros tinham o mesmo problema, mas como residiam em outros logradouros com melhor assistência, tinham menor estatística de atrasos registrada. Mas, mesmo assim, notou que quase todos os colegas olharam para ele com um misto de desaprovação e culpa, como se ele fosse o responsável pelo esculacho geral que caiu sobre as cabeças de todos.

Era sábado e o expediente havia encerrado. Bidinho, acabrunhado, despediu-se dos colegas jurando que iria fazer de tudo para não chegar mais atrasado. Mesmo que, para isso, tivesse que dormir no ponto do ônibus ou ir até Taguatinga para pegar um deles no ponto inicial.

Todo sábado, à tarde, Bidinho costumava reunir alguns “irmãos” na esquina em que ficava sua moradia e, com a Bíblia aberta, ficava por uma hora, mais ou menos, pregando, louvando e entoando hinos. Os circunstantes, embevecidos, o acompanhavam. Naqueles momentos, Bidinho sumia e surgia o Pastor Abdias.

Naquele sábado, os “irmãos” sentiram a falta do Pastor. Não estava em casa e não havia deixado recado nenhum. Ninguém sabia de nada!

Bidinho, quando em casa, gostava de ouvir rádio. Era louco por saber das notícias e, por isso, ouvinte de carteirinha da “Rádio CBN’, “A Rádio que Toca a Notícia”. Assim, 95,3Mhz era o ponto de parada no “dial do seu rádio”.

Dias antes havia escutado um programa da Rádio em que o apresentador, Milton Jung, se esvaindo em entonações vocais exageradas, entrevistava um ambientalista auto-promovido a especialista em engenharia de tráfego.

O sujeito delirava em volta de uma tese que propunha a mudança de hábito das pessoas com relação ao transporte. Para ele, o uso dos automóveis particulares deveria ser substituído pelo uso das bicicletas. Assim, o trânsito ficaria descongestionado, a poluição ambiental seria reduzida e o transporte público adquiriria maior velocidade, protegendo o meio ambiente, etc... etc...

Embora Bidinho não compactuasse com essa “tese”, premido pelos maus bofes do “administrador””, achou por bem repensar suas idéias a respeito de as pessoas que usam carros particulares passarem a utilizar bicicletas no deslocamento pelas ruas da cidade.

Para ele, não havia como um sujeito se deslocar de bicicleta sem chegar ao local de trabalho suado, fedido e com a roupa toda em desalinho. Como se sentiriam essas pessoas? Como os chefes iriam conviver com funcionários suados, e de péssima apresentação? Como fariam as mulheres? Como um sujeito viria de Taguatinga ou Planaltina ou, do raio que o parta, de bicicleta? E o sol, e a chuva, e o vento e quanto tempo levaria pedalando? Como carregar pertences ou volumes?

Bidinho achava tudo isso uma maluquice sem tamanho, de gente com cabeça hipironga, sem noção, fundamentalistas de escritório, que ficam arquitetando fantasias para os outros terem que se virar. O pior é que no governo há políticos que navegam em ondas parecidas e não será nenhuma surpresa se um dia uma aberração dessas for discutida e aprovada no Congresso. Os fabricantes de bicicleta descobrirão em quem investir nas futuras campanhas eleitorais... Uma desgraça! Pensava.

Pois bem, naquele sábado, em vez de estar pregando lá no seu cantinho, da Estrutural, Bidinho, antes de sair do edifício em que ficava o escritório de cobranças, resolveu dar uma olhada na Internet para olhar preços de bicicleta. Clicou aqui, clicou ali e acabou parando no site das “Casas Bahia” que estão promovendo uma liquidação que nunca termina; de janeiro a janeiro, a liquidação não para... Uma beleza! Pensou...

Das imediações do “Pátio Brasil” até ao “Conjunto Nacional” era uma senhora caminhada, mas valeria a pena. Iria ver a bicicleta na “liquidação” da “Casas Bahia”.

Examina daqui, esmiúça dali, observa acolá, pronto! Acabou por encontrar uma bicicleta com pneu balão, câmbio com várias marchas e um desenho bonito. Tinha um preço accessível e poderia pagar em dez prestações, sem juros.

Um pouco mais de tempo para ultimar a operação, aprovado o crediário, Bidinho pegou uma que já estava montada, prontinha para ser usada e saiu pelos corredores do “Conjunto Nacional” com o seu novo e próprio meio de transporte. Agora o gerente não iria mais admoestá-lo diante dos colegas. Trataria de sair mais cedo de casa e chegaria um pouco antes do horário. Assim mostraria ao gerente, quem era o “Seu Abdias”.

As pessoas que circulavam pelas galerias, em pleno sábado, faziam do “Conjunto Nacional”, um verdadeiro formigueiro. Gente de todo o tipo e para todos os gostos. Todos atraídos pelas vitrines, promoções e demais apelos pertinentes ao que conhecemos como “sociedade de consumo”. Ali é um dos palácios em que o consumismo reverenciado com todos os rituais a que tem direito...

Alguns olhavam para aquela cena inusitada e faziam pouco caso ou achavam graça, com ares de reprovação. Como pode alguém andar com bicicleta na mão aqui dentro do Shopping? Esse cara só pode ser um “sem noção”!

Amarrada a Bíblia no “porta-embrulho” da bicicleta, lá se foi Bidinho, todo prosa, deslizando pelo “Eixo Monumental” afora, observando coisas que de ônibus não estava acostumado a ver.

Os carros, ônibus e motocicletas passavam desabalados, produzindo um deslocamento de ar bem perceptível. Alguns chegavam a balançar a bicicleta. Mas, sentiu segurança e prosseguiu seu caminho. Com o tempo cuidaria de se adaptar ao trânsito e adquiriria automatismos para fazer o seu circuito diário de ida e volta.

Em determinado momento, seu olhar foi atraído pela imagem de Juscelino, com a mão direita em atitude de aceno. Passava diante da estátua que se destaca no monumento do “Memorial J.K.”.

Lá dentro, no fundinho da alma, Bidinho teve a impressão de que aquele gesto de Juscelino, sorridente, tinha algo a ver com ele. Não estava bem certo do significado. Poderia ser um simples aceno, um cumprimento, um gesto de boas vindas ou alguma outra coisa que não sabia bem o quê.

Ainda pensando nessa visão, já estava trafegando pela “ViA EPIA”, bem em frente ao lugar em que, hoje, funciona o “Shopping Popular”, ali nas imediações da antiga “Rodoviária”.

A poucos metros dali, já estaria dobrando à direita, ingressando na “Estrutural”. Quando se preparava para fazer a “conversão à direita”, como dizem na linguagem do trânsito. Não viu nem ouviu mais nada...

Uma freada brusca, uma pancada abafada e um baque surdo foi o que alguns transeuntes presenciaram quando um ônibus, quase vazio, que ia para Taguatinga, por algum motivo que a “Perícia” iria descobrir, pegou em cheio uma bicicleta verde com o seu condutor.

Bidinho não sentira nem a pancada nem o tombo. Batera com a cabeça no asfalto, com imediata concussão cerebral. Quase sem esboçar os espasmos comuns da agonia, ainda teve um esgar de pensamento racional. Entendera, finalmente, o significado do gesto de Juscelino; era, simplesmente, “um chamamento, um aceno de boas vindas”.

Na esquina da pregação, lá na “Comunidade” os irmãos desistiram da espera e o grupo foi se dissolvendo, aos poucos. Todos, com cara de insatisfação pelo tempo perdido e pela frustração.

Mais tarde, porém, voltaram a se reunir na mesma esquina. Um irmão, com a Bíblia aberta, discursava sobre as qualidades do extinto enquanto um outro irmão, assumindo o lugar vago, iniciou a pregação falando sobre “os que foram chamados e os que foram escolhidos”. Para ele, Bidinho fora tanto escolhido quanto “chamado”. Encontrara seu lugar no Reino dos Céus.

No escritório, na segunda-feira, o administrador, possesso, com o cartão de ponto na mão, telefonava para o diretor, lá no hotel-pousada, exigindo a demissão imediata do funcionário relapso, faltoso, e descumpridor das ordens superiores. Eam onze horas e o protocolista não havia dado o ar da graça. Nem um aviso, nem um telefonema, nada de nada!

O Diretor, interessado em atender a uma turista que desejava hospedar-se, não estava minimamente desejoso de falar em funcionários do escritório, naquele momento.

Faça o que você achar melhor! Respondeu em voz alterada!

Batendo o telefone, olhou para a hóspede, com um sorriso, desfazendo-se em gentilezas...

A mulher era uma loura estonteante, com rosto e corpo de “capa de revista”, trajando um vestido justo que deixava até franciscano de torcicolo, pensando "coisas"...

Cumpridas as formalidades, o Diretor fez questão de conduzir a hóspede aos seus aposentos. Passou a mão na pequena mala da moça, indicando-lhe a direção a seguir. Ela caminhava à sua frente. Os sapatos de salto alto, possibilitavam a doce visão de meneios provocantes, nos quadris, por si sós, obras de artista.

Ele, fantasiando mil coisas naquele lapso de visão, nem se lembrava do escritório de cobranças.

Que se dane o funcionário, que se danem as cobranças, que se danem os devedores, os credores, os inadimplentes, as pendengas jurídicas, os processos, o cartão de ponto e que se dane, também, a Justiça!

Enquanto isso, lá pela confluência da EPIA com a Estrutural, os carros que passavam faziam marolas de vento que espalhavam as folhas do Livro Sagrado, pela imensidão do asfalto...

Amelius
Enviado por Amelius em 15/08/2013
Reeditado em 15/08/2013
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