Cinco do oito

Paramos no acostamento sem cerimônia, assim, tirando bastante terra do chão. Eu estava deitado no banco de trás. As duas vieram correndo em nossa direção, lado a lado, como duas irmãs brincando pela praça.

Mas não eram irmãs.

Enquanto uma disse oi para Pedro, a outra perguntou como iam as coisas para Marta, então Pedro e Marta responderam numa voz só, o de praxe embaralhado. Para quê a cerimônia? Marta tomou um gole de urubu preto com AdeS de laranja.

As duas direcionaram o corpo, o rosto, o olhar e principalmente toda a atenção que uma mulher pode oferecer (linguagem corporal), para mim, sim, unicamente para mim. Meu corpo estava no banco de trás, deitado, meu cérebro, ativo, muito ocupado processando bilhões de dados que compunha aquele cenário semi-invertido, a lenta construção do espaço-tempo.

— E aí, rapaz? – Ela falou isso prolongando o e aí. Foi gentilmente gentil.

— Tô bem. A galera já chegou?

Antes que Sílvia Silva (sim, a chamávamos de Sílvia-Silva!) pudesse responder, a outra tomou seu lugar, apoiou os braços no vidro da porta e colocou a cabeça dentro do carro. Então... Aquela cabeleira cacheada, fria e cheirosa escorreu por todo meu rosto...

Aquela cabeleira fria, cacheada e cheirosa escorreu por todo meu rosto...

Aquela cabeleira cheirosa, cacheada e fria escorreu por todo meu rosto...

Ela sorriu como a Mona Lisa. Pisquei duas, três vezes.

Semi-flexionei a perna direita e fui me levantando com a ajuda do antebraço esquerdo apoiado no estofado do carro, enfim, todo sem jeito. Por puro instinto, aproximei meu rosto ao dela, a cabeleira nos protegeu do resto do mundo. “Cenário completo. Este momento será armazenado na Memória por toda a existência”, meu cérebro avisou como aquela vozinha do antivírus AVAST, mas silencioso. Só eu escutei, é claro.

(Mudança do tempo verbal).

Então ela me beija.

Sim, ela permite que eu encoste meus lábios aos dela. Isso é um beijo. Eu a beijo.

***

Estamos em pé, próximo a parede, frente a frente. Não sei o nome dela. Lembro quando eu estava na roda punk, Sílvia Silva apareceu, sorrindo para mim, socando e chutando violentamente as pessoas e o ar. Ela veio logo atrás. Foi quando a vi pela primeira vez – eu acho. Ela andava um pouco agachada, parecia ter medo de objetos voadores ou de golpes diretos no rosto... Que rosto lindo. Um chute na costela me derrubou, fui pisoteado.

O nome dela é... É... É... Qual é teu nome? Não, claro que não posso perguntar.

Uma questão importante: eu não consigo lembrar ou nunca soube? Engraçado que eu só a chamo de tu, e estamos apaixonados, vê se pode...

Estamos em pé, o que rolou no carro selou um sentimento genuíno, conversar não faria muito sentido, sei lá. Como a chamam? Como esta moça foi registrada? Por que não consigo lembrar? Eu avanço, a boca dela está úmida. Meu deus, que beijo, minha língua goza. Todos gritam, festejam, parece que esperavam por isso há bastante tempo. “Ela merece! Ela merece! Ela merece! Ela merece!”, infinitamente até ao infinito.

Ela merece?! Como assim, ela merece?!

Abruptamente o cenário se modificou para algo que não consegui compreender. Tinha certeza que se eu dissesse algo, minha voz se expandiria e destruiria absolutamente tudo, e ao mesmo tempo não fazia a mínima ideia do que isso queria dizer. Senti um desconforto por todo o corpo, mas nenhuma dor. Essa percepção durou alguns segundos. Ela continuava na minha frente, estática, e viveria o resto da vida sorrindo monalisticamente. E como um quadro único, jamais diria alguma coisa. Ah, bom. Então eu acordei.

Tom R
Enviado por Tom R em 05/08/2013
Reeditado em 06/09/2013
Código do texto: T4419984
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