Escrito ao som de Aonde quer que eu vá - Paralamas do Sucesso

 
 
Conversa de Telemarketing
 
 
 
- Alô, boa tarde.
- Boa pra quem?
- Desculpe, o que disse?
- Nada. Quem está falando?
- Aqui é Laís, da operadora de créditos Aqui Tudo Pode. O sr. Renato está?
- Não quero crédito.
- Estou falando com o senhor Renato?
- Sim. E não, não quero crédito.
- Sr. Renato, para sua segurança, essa conversa está sendo gravada. Gostaria de estar anotando o número do protocolo?
- Não. Escuta, tenho que desligar, estava no meio de uma...
- Sr Renato, estamos entrando em contato pois constatamos que, para vossa alegria, o senhor foi contemplado num de nossos sorteios. Como prêmio, o senhor vai estar recebendo um crédito que equivale a, no mínimo, 60% do seu salário.
- Mas eu não me inscrevi em nenhum sorteio!
- As parcelas vão estar sendo debitadas diretamente na sua conta bancária e a taxa de juros será pequena...
- Pode cancelar isso tudo, agora tenho que desligar...
- Além disso, temos planos especiais para servidores públicos, aposentados e pensionistas, e o senhor vai estar pagando a primeira parcela somente no final do mês...
- Moca, não quero crédito, nem gerúndio. Obrigado.
- O senhor gostaria de estar dividindo o valor do prêmio em quantas prestações, senhor?
- Garota, você é surda, burra ou o quê? Estamos falando a mesma língua? Presta atenção, estava num caso de vida ou morte e...
- Fique comigo mais um momento, senhor, não vou demorar. Para completar seu cadastro só preciso que me informe alguns dados.
- Cadastro? Que cadastro? De onde vocês pegaram meu cadastro?
- Seu banco nos forneceu os dados.
- O cadastro é meu! É coisa pessoal, íntima!
- Fique tranquilo, informações pessoais permanecem no nosso sistema e não são divulgadas. Qual a sua data de nascimento?
- Pra que você quer saber minha idade?
- Para calcular o valor exato do prêmio, senhor. Ele será creditado em sua conta amanhã mesmo.
- Só pode ser brincadeira, você é surda mesmo. Se fosse em outros tempos eu teria desligado na sua cara, mas não sei o que acontece, você parece meio desesperada.
- ...
- Bom, de qualquer forma, não quero crédito nenhum. Tenha uma boa tarde...
- Boa tarde? Boa para quem?
- O quê?
- Escute, o senhor acha que eu sou mesmo surda ou coisa assim? Não, não sou! A verdade é que tento não dar ouvidos a grosserias de clientes mal educados, o que e bem diferente.
- ...
- Tudo que eu tenho escutado desde hoje cedo, e durante toda minha vida, é não. Acho que dificilmente o senhor deve ouvir essa palavra, pois pelo que vejo aqui no sistema, o senhor tem uma excelente conta bancária. Eu sei que deve estar ocupado, provavelmente dando ordens, comprando ações ou demitindo gente como eu, acontece que eu só quero fazer meu trabalho e lhe vender a porcaria de um crédito pra bater minha meta! Perto de tudo que tem, seria pedir demais?
- ...
- (choro)
- ...
- Meu Deus, o que estou dizendo... S-Sr. Renato, ainda está na linha?
- Sim.
- Me desculpe, nem sei o que dizer, senhor. Bom, vou lhe transferir para o setor de ouvidoria caso queira fazer uma reclamação desse atendimento. Seria importante que dessa vez o senhor anotasse o número do protocolo. Posso repetir?
- ...
- Senhor?
- Pare de me chamar de senhor. Você está com meu cadastro aí, não está? Muito bem, já que invadiu minha privacidade e sabe tudo sobre mim, que tal me chamar de você?
- ...
- Ficou muda, é?
- ...
- Não se preocupe, não foi uma cantada, ou sei lá se foi. Não faço isso desde quando... desde quando...
- ...
- Esquece, mudei de ideia. Que mais você quer de mim?
- Como?
- Os dados. Do que mais precisa?
- Ah sim! Data de nascimento?
- 22 de agosto de 1960. Muito pra você?
- ...
- ...
- O endereço de residência consta como Rua dos Arvoredos, 195. Continua o mesmo?
- Sim, e você será bem vinda, quando quiser. Não sou muito bom de cozinha, mas faço um bom chá e adoro ver filmes em casa. Sabe qual filme veríamos?
- ...
- ...
- Senhor Renato, vou ler as cláusulas do contrato e, caso tenha alguma dúvida, pode me interromper, tudo bem?
- ...
- Sr. Renato?
- Escute, eu não vou contratar seus serviços.
- ...
- Por favor, não fique brava. A verdade é que meu telefone não toca há dias e eu... eu só queria...
- Falar com alguém?
- Isso. Então finalmente ele tocou, e foi você, acredito que por alguma razão.
- Senhor, eu...
- Senhor, senhor, sempre senhor. Faz tanto tempo que ninguém me chama de Renato, ou de amor, ou de amigo. Nos últimos anos tudo que tenho escutado é senhor, sim senhor.
- ...
- Laís? É esse seu nome, né?
- Sim senhor.
- Me responde uma coisa, Laís. Pra quantas pessoas você disse esse mesmo discurso hoje?
- Muitas, muitas mesmo.
- Pois é, e eu não quero me tornar mais um número de protocolo. Vamos fazer o seguinte, hoje foi um dia de cão pra você: todas essas ligações, clientes mal educados, metas a cumprir, enfim. Que tal relaxar um pouco? Você tem meus dados, tem meu celular. Ligue pra mim, ok?
- E-Eu não sei se devo.
- Eu sei o que esta pensando. Não, não sou nenhum velho excêntrico ou tarado, pode acreditar. Solitário, talvez.
- ...
- Vamos, me dá um crédito!
- (risos)
- Ah, eu imagino um sorriso com covinhas no rosto.
- Senhor, como falei, esta conversa está sendo gravada e eu já disse muita coisa que não deveria.
- Deveria sim. Além disso, você se importa? Realmente se importa com o emprego?
- ...
- ...
- Eu tenho que encerrar a ligação. Há mais alguma coisa que eu possa fazer por... você, Renato?
- Já esta fazendo, querida, está me ouvindo. Tem mesmo que desligar?
- Hum, acho que posso dar um jeito.
- ...
- ...
- Olha, Laís, já demiti muita gente, você está certa. Já disse não para várias pessoas até me encontrar aqui como estou agora, no sofá da sala, olhando para uma mesa posta para um, apenas. Mas do nada você cai de paraquedas na minha vida com uma persistência e atrevimento que há tempos não via em ninguém! Sabe o que eu estava prestes a fazer antes dessa ligação?
- Sei. Estava esperando o telefone tocar.
- (risos)
- Qual seria o filme?
- Hein?
- O filme que veríamos se eu fosse até sua casa.
- Sim senhor.
- Não entendi.
- Sim senhor, e o nome do filme.
- (risos)
- (risos)
- É loucura convidar uma desconhecida para te visitar, sabia?
- Não e loucura, Laís. Talvez agora você não entenda, mas você salvou minha vida e isso é o mínimo que devo fazer - amar você por isso.
- ...
- E nunca mais deixá-la chorar outra vez.
- ...
- ...
- Renato?
- Sim.
- Prepare o chá, estou a caminho.

 
Gostaria de saber o que acontece no encontro de Laís e Renato? Leia no microcontro Perfume de Mulher

 

Este texto faz parte do exercício criativo "Um Salto de Paraquedas".
Saiba mais e conheça outros textos acessando:
http://encantodasletras.50webs.com/umsaltodeparaquedas.htm

 
Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 24/06/2013
Reeditado em 01/07/2014
Código do texto: T4355879
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