Sem dó

Parei no primeiro minibox que vi. Fui entrando e perguntei o preço da água. O senhor do balcão disse “um real”. Subitamente dei conta de que a pergunta era desnecessária, porque eu tinha dinheiro o suficiente, mas os maus hábitos sempre falam mais alto. (...) Fiquei a meia porta do comércio, sem tremer ou hesitar, tirei um cigarro do maço, acendi até queimar totalmente a ponta, traguei, soltei a fumaça. Uma baforada de dragão. Ah, coisa boa. Fazia tanto sol que mal vi o rastro da fumaça que costumeiramente faz pelo ar mesmo a luz do dia. Passava tanta gente por ali que provavelmente nem se deram conta das minhas roupas, nem as manchas de sangue... Dei um gole com gosto, desceu igual felicidade. Traguei mais umas três vezes, pronto, tudo quanto é substância química brincando no meu organismo, fodendo todas as estruturas. O último trago é tão único quanto o primeiro: o filtro é espremido de tal forma que a brasa restante é sentida levemente pelos dedos e lábios, queimando-os num milésimo, prazerosamente. Joguei longe. Último gole, longe de ser igual o primeiro. Hora de ir. Paguei a garrafa d'água com uma moeda que brotou entre meus dedos sujos. Agradeci, mas o senhor não respondeu, mas provavelmente por rudez, ele não me pareceu um sujeito perspicaz. Voltei a andar, o sol deu um cascudo na minha cabeça. Olhei para trás e vi o senhor do balcão fitando meu semblante e com um telefone colado ao ouvido. A vertigem veio sem pedir permissão, igual algoz operando guilhotina, estuprador arrombando um cu, polícia esculachando pobre, um humano quebrando o pescoço de uma galinha...

Tom R
Enviado por Tom R em 30/04/2013
Reeditado em 15/05/2013
Código do texto: T4266386
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