Chuvas ao entardecer EC

Dia quente. Passarinho nem cantava. Nenhuma nuvem no céu.

O mormaço subia dos paralelepípedos escuros e brilhantes. As pessoas andavam devagar se esgueirando pelas calçadas à procura de um pedaço de sombra no toldo da loja, na marquise do prédio de apartamentos, numa árvore na calçada. Alguém pedia no bar do português um copo d’água de torneira (quase morna). Na esquina, o sorveteiro vendia raspadinhos de sabores variados. O meu? Groselha! Era lindo ver o vermelho se misturar ao gelo no copinho cônico de papel. Um velho fumava seu cigarro de palha em frente ao armazém do seu Balloni.

Astro, o cão vira-lata guardião da rua, cochilava sobre o tapete verde que enfeitava a soleira da porta da loja de aviamentos da Celina, caprichosamente arrematado com bicos de crochê. Ponto de encontro das costureiras que se apressavam em ataviar as fantasias para o carnaval que se aproximava.

Ausência de brisa. Nada se movia na tarde ofuscante.

Sentada na varanda da casa eu observava tudo em detalhes. Mulheres usavam sombrinhas. Crianças protegiam a cabeça com chapeuzinhos coloridos. Alguns homens vestiam terno e tinham os cabelos bem penteados com brilhantina. Elegância simples.

A vida seguia seu ritmo dolente e nada de novo acontecia debaixo daquele sol a pino de fevereiro, a não ser meu tão esperado aniversário no dia 28. Dia de festa.

A carroça do padeiro tocava o sino exatamente às duas e meia da tarde anunciando sua chegada. As patas do cavalo soltando faíscas escorregavam no calçamento liso e gasto pelo tempo. Nossa casa era a última daquela rua íngreme e ficava na descida. Seu Jairo trazia minha guloseima favorita: pão doce com creminho amarelo por cima. Delícia! Uma infinidade de pães do tipo bengala, todos arrumados, por ordem de cor, na caixa de papelão: os mais claros à frente, os mais morenos atrás. Lembra quando a gente comprava o bengala na padaria, punha embaixo do braço e ao chegar em casa estava todo amassado e a manteiga escorria sobre a massa fofa e quente? Biscoitos de polvilho, rosca de coco e bolachinhas de nata.

Num calor de fritar ovo no chão, apenas nesse momento minha mãe ia até a rua porque não se dava bem com o sol. O padeiro enxugava o suor na toalha presa à calça de sarja cinza chumbo, mas era a freguesa quem escolhia o alimento e o embrulhava no papel. Ele lidava com o dinheiro ou, na falta deste, marcava a compra na cadernetinha espiral cujo acerto era feito no início de cada mês, quando vinha o pagamento – no quinto dia útil. O lápis preto ficava enroscado no boné alvejado e repassado com pedra anil, o que lhe conferia aquele branco azulado. Eu guardava os papéis de pão porque sabia bem para qual brincadeira iriam servir. Dobrava-os com cuidado.

As nuvenzinhas se aproximavam lentamente num balé suave e delicado. Pareciam algodão doce. Uma após outra mudavam de formato só para me encantar. Não faltavam ao espetáculo que já se anunciava.

Minha mãe tinha um ferimento antigo no joelho direito, resultado de uma pedrada que levara do Pedro louco, um andarilho bem conhecido na cidade. Detestava que o chamassem de velho doido, mas ela adorava mexer com ele. Coisa de criança levada.

_ Hoje vai chover. Meu joelho está pinicando!

Dito e feito. As nuvens iam ficando espessas, escuras e os trovões resmungavam ao longe. Eu imaginava que Deus estava mudando os móveis de lugar para lavar o chão do céu!

De repente o vento forte revolvia as folhas e tudo o que havia na rua ganhava vida, num rodopio que levantava as saias das donzelas e virava os guarda-chuvas pelo avesso. Todos de varetas para o ar. Eu ria.

Era a melhor hora do meu dia. Soltava meus cabelos castanhos encaracolados quando sentia o cheiro da chuva que vinha regularmente ao entardecer lavando tudo: os telhados, as ruas, os detritos, a alma.

_Vem pra dentro menina. Anda! Vai ficar resfriada. Avisava minha mãe, apressada a vedar as janelas e a caçar uma vasilha pra colocar na goteira da sala de estar. Se viesse do norte certamente ia pingar bem em cima da poltrona.

Que gripe, que nada! Eu ficava era lá fora mesmo vendo a dança bem combinada de água e vento numa sincronia perfeita da natureza. Sentia o borrifar da chuva no rosto, corria pela calçada, bebia água geladinha que caía do telhado.

Ela surgia tão rápido quanto ia embora. Na despedida, enquanto evaporava, uma fumacinha lépida se desprendia dos paralelepípedos ignorando os carros que por ali transitavam. Então eu pegava meus papéis de pão dobrados e fazia barquinhos. Subia até o início da rua e soltava dois ou três enxurrada abaixo acompanhando-os numa corrida frenética. Eles iam felizes para os bueiros. Certamente encontrariam um belo rio mais à frente. Isso me dava a exata sensação de liberdade. Sensação não é a mesma coisa que sentimento. Sensação passa. Sentimento fica.

Pena que não tenho mais coragem de tomar uma boa chuva! Rs.

Mas um dia vou arriscar...

Caro leitor, este texto faz parte do Exercício Criativo (EC) – Chuvas ao entardecer – saiba mais e conheça outros textos em: http://encantodasletras.50webs.com/chuvasaoentardecer.htm

Mariacris
Enviado por Mariacris em 05/02/2013
Reeditado em 12/07/2013
Código do texto: T4124655
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