Ela teve que colocar grades em volta da porta do meu escritório. A perspectiva de precisar varar as madrugadas estudando e escrevendo nele a apavorava. Seu escritório fica num quartinho que construíram em cima da cozinha da casinha de Vila na qual mora.      
     A idéia é a de que pudesse ter um espaço mais reservado para momentos em que precisasse de silêncio e algum isolamento, já que temos dois meninos pequenos, com idades de seis e três anos. São meninos saudáveis e muito levados, portanto barulhentos e sobretudo, não entendem ainda que a presença da mamãe em casa não significa necessariamente estar completamente à sua disposição, quer seja conversando, servindo-lhes sucos e comidas, ou mesmo assistindo-os brincar no computador ou na vila.
     Nas poucas vezes que ficou de madrugada no escritório, tive pesadelos com assaltos, seqüestros e outras atrocidades. Os fundos da casa dão para os fundos de um enorme Colégio religioso. Antes de mudar, o antigo proprietário avisou que não descuidasemm da segurança, pois já tinha entrado gente na casa..., mas não deu detalhes e ela, com um filho de quatro meses e outro com três anos, preferiu não saber mais sobre o ocorrido. Mas obviamente essa informação nunca saiu da sua cabeça.
     Hoje, tendo que ficar escondida aqui para terminar o esboço de um artigo muito sofrido, não pelo tema, mas pelo conteúdo emocional que o cerca, ela se depara com uma enorme grade, enferrujada, que fragmenta e separa o seu olhar de dois lindos coqueiros que vejo no terreno do Colégio.
     Todas as vezes que vira o olhar para a esquerda, em busca de um descanso dos olhos da tela do notebook, vê primeiro as grades, e não consigue deixar de compará-las com as grades que tenho dentro de si.
     Traz um “pool” de sofrimentos. Mistura sofrimentos sociais, pois mora na cidade do Rio de Janeiro e trabalha em grandes favelas da cidade há mais de 20 anos, com as violências sofridas pessoalmente. Nunca sofreu abusos por parte de favelados e os tiros que seu carro tomou no Alemão, foi por ter sido confundido com o carro de um policial que tinha subido o morro horas antes dela e barbarizado a comunidade. Assim que percebeu que os tiros eram na sua direção, saiu do carro, acenou para a fortaleza (lugar onde no final da década de 80, os traficantes se concentravam) e logo que perceberam ser ela, pararam de atirar. Diferentemente de hoje em dia, em que todos os lugares estejam ocupados e as favelas, seu entorno e por extensão, quase toda a cidade, seja uma ampliação dessa fortaleza.
     Foi muito roubada. A última conta que eu fez deu 15 vezes, entre assaltos, furtos, golpes de estelionatários, etc.
     Até textos seus foram roubados.
     Uma tal fulana além de copiar páginas inteiras escritas por ela, ainda retirou o registro da sua passagem pela vida daquele com o qual ela teimou em ser eleita a pessoa do trabalho com a qual ele se relacionaria prioritariamente e para quem ele deixaria todo o seu legado.
     Sinceramente, ela reconhece que passou por tudo isso por responsabilidade própria. Por um lado, acredita em Karma, portanto acha que “jogou pedra na cruz e bebeu muita cachaça em cálice sagrado” em algum momento dessa longa existência da sua alma.
Por outro lado, continua possuindo um jeito delirante de se relacionar com as pessoas, achando que mesmo que elas digam com todas as letras que estão de má-fé, que podem lhe fazer mal e que passarão por cima de dela em função de seus interesses, ela não acredito. Faz questão de não acreditar e se relacionar com elas como se fosse a “Alice no país das maravilhas”. Delírio puro.
     Só se lembra que não é Alice e que esse aqui não é o país das maravilhas quando está estraçalhada no chão, sofrendo todos os tipos de dores sem saber como se reerguer. Ou talvez sua auto-estima seja tão baixa que nunca tenha mesmo me visto sair do chão, pensa por vezes.
     Foi muito humilhada. Sua mãe se achava a ainda de acha linda e a pessoa mais inteligente do mundo. Casou com um afrodescendente e lhe teve mais puxada para o seu pai e seu irmão, embora se pareça com seu pai, tem pele e cabelo mais claros. Como sua mãe é a pessoa mais inteligente do mundo, imagina se dentro de casa teria outra? Claro que não! Além de afirmar a feiúra da filha, sempre e de diversas formas, a mãe também fazia questão de ressaltar que sendo a filha a primeira aluna da escola, não fazia mais do que sua obrigação. Sem elogios. Apenas teve direito à sobrecarga de ser confidente, sem ter maturidade para se defender das maluquices em atos e relatos que lhe chegavam.
     Seu pai lhe tratava bem quando lhe via. Era carinhoso e engraçado quando ela conseguia vê-lo em casa, pois como todo boêmio ia dormir tarde e acordava depois que a filha já tinha saído. Foi menino de rua. Sofreu abandono familiar e o pouco do relatou do que passou na rua, dá para imaginar que não foi nada fácil. Depois que constituiu família e quando a filha tinha uns três anos, pode adquirir seu primeiro carro, dedicou-se à própria diversão, deixando-nos com migalhas de dinheiro e amargando sua ausência, ainda mais ressaltada pelas queixas diuturnas da mulher.
     Essa filha, hoje mulher, olha para tudo isso e se sente “na merda”. Anda atrás de voltar para a terapia, pois tudo o que passou, somado ao último roubo nesta equipe de trabalho, lhe deixou marcas profundas que se traduzem na amargura que hoje tanto lhe assusta. Traz desde meados de 2008 uma visão muito negativa das pessoas e da vida. Para ela, todo mundo tem graves defeitos, fica puta com qualquer coisa e minha capacidade de compreensão, compaixão e perdão chegou a quase zero. Anda cada vez mais isolada, de fato e internamente está isolada.
     O novo susto se deu ontem quando ela soube, mais uma vez que aquele que foi o motivo da disputa, que lhe gerou o atropelamento citado acima, anda querendo falar com ela. Não seria de estranhar, pois até setembro de 2009 ele lhe chamava freqüentemente para ir à sua sala para tecer breves comentários sobre o último sermão do seu pastor, lembrar de algum livro que lemos durante a pesquisa sobre religiosidade popular, ou mesmo me pedir para resgatar algo que ele escreveu e que um dia ela comentou ter gostado. No mês anterior, lhe chamou para almoçar com ele, pois queria lhe dar os parabéns por ela ter entrado no doutorado, e coisas assim.
     A diferença desse momento para os outros é a de que há seis meses ele desencarnou. Há uns três meses atrás ela teve um sonho em que ela estava numa reunião, com umas seis pessoas que não conhece, numa sala onde nunca esteve, mas parecia uma reunião de trabalho cujo assunto especificamente ela não lembra.
     O fato é que num determinado momento do sonho, ela olha para a frente, e o vê em pé encostado num arquivo de ferro. Sua imagem era a de antes de ficar doente. Alto, forte, com uma pequena protuberância abdominal, calvo, de óculos, com seu tradicional traje composto por calça jeans e camisa quadriculada de manga comprida. Olhou várias vezes para confirmar o que via e ele apenas esboçava um sorriso. Olhava para as pessoas em volta da mesa se perguntando se elas o estavam vendo, já que ela sabia que ele estava morto. Não se conteve. Parou a reunião e perguntou se alguém estava vendo algo ao lado do arquivo. Apenas uma moça disse estar vendo um senhor em pé e o descreveu. Todas as outras pessoas afirmaram não ter nada ao lado do arquivo. Até a moça que o estava vendo não deu muita importância e a reunião seguiu, mas ela não conseguia prestar atenção ao que estava sendo discutido.
     Passou a se comunicar com ele por pensamentos. Conseguia ouvir-lhe a voz, mas ele não abria a boca. A primeira coisa que fez foi tocar no assunto da fofoca na qual foi envolvida e que ela não tinha culpa, pois era tudo mentira (daquela, que descobriu posteriormente que tentou além de lhe denegrir, lhe apagar da história de tudo o que se refere a ele). Ele aumentou o sorriso e meio sem paciência, lhe disse que não precisaria mais me preocupar com isso, pois ele já estava sabendo de tudo. Mas ele precisava muito que ela fosse rápida em atendê-lo, pois ele tinha ido ali para lhe dizer que a gente tinha uma missão. Só se lembra até ali. Não sabe se o sonho foi interrompido aí ou se ele continuou e ela bloqueou o resto.
     Quando acordou, tentou se lembrar do resto em vão, mas ficou profundamente impressionada com a nitidez da cena e com a forma com que se comunicavam. Contou o sonho para algumas pessoas e uma amiga espírita, que também era da tal equipe disse que pelas características do sonho, o contato realmente se deu. Outros acharam que o sonho advinha de uma necessidade dela de que ele soubesse o que de fato tinha acontecido e ficar tranqüila de que ele sabia que foi alvo de calúnias. Ela ficou na dúvida, mas achou mesmo que podia ser algo intrínseco à sua mente.
     Ontem, no sufoco de tentar conseguir mais tempo para trabalhar o esboço do artigo, que tinha que ter enviado há 15 dias atrás, como trabalho de uma disciplina que termina na semana que vem, foi cedinho para a sala onde eu fica, para continuar escrevendo antes da reunião que tinha as dez. Como ela não havia tomado café da manhã, foi primeiro ao bandejão e procurava comer rápido para subir, quando viu um pesquisador conhecido na fila. Esse rapaz que é sempre muito simpático com todos lhe jogou um beijo. Ela deu-lhe um tchauzinho e continuou concentrava no pão que mordia.
     De repente, ele saiu da fila e veio perto dela dizendo que queria lhe perguntar algo depois. Continuou sem dar muita importância, terminou meu café e foi pagar. Como ele ainda estava em pé na fila, veio lhe perguntar baixinho se ela andava sonhado com o tal senhor. Sorriu e disse que não e lhe perguntou porque. Esse disse que estranhamente ele andava sonhando. Ela imediatamente lhe falei que era normal, pois na página eletrônica da instituição estava anunciada uma homenagem para ele dia 30.
     Ele afirmou categoricamente que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, pois ele não sabia da homenagem, da inauguração de um postinho com o seu nome e etc, já que ele não estava acompanhando as questões relativas a esse processo. Aí ela estranhei também e parou para prestar atenção, e veio a bomba. Ele disse ter sonhado com o senhor umas três vezes e desses sonhos não se lembra de mais nada além dele sempre lhe perguntar: - sabe da (nome dela), tem visto a (nome dela), tem estado com a (nome dela), ou algo do gênero. 
     Ele achava que só podia ser ela. Afirmou que já está a algum tempo pensando em lhe procurar pelo prédio para lhe contar isso, mas não sabia em que sala e nem quando lhe achar. Ela saiu atordoada e foi para o rol dos elevadores, mas teve um forte impulso e voltou para falar com o pesquisador. Contou-lhe rapidamente seu sonho e lhe pediu que tentasse se lembrar, pois poderia ser que identificassem pistas de qual assunto seria esse. Ele disse que não tinha tempo no dia, mas depois lhe procuraria. Aí ela lhe disse que ficava na sala de número tal, mas na placa tinha o nome do tal senhor. Ele estranhou mais ainda... Ela disse que essa era uma longa história que lhe contaria depois com calma. Até brincou, “você está na sala dele e ele vem perguntar para mim, onde lhe encontrar?”
     O engraçado é que tudo teve que ser dito rapidamente, de maneira mais ou menos cifrada e em tom baixinho, pois ambos tinham medo de que as pessoas que estavam na fila percebessem aquele papo inverossímil e identificassem de quem estavam falando. É claro que não deu muito certo, pois tinha na fila uma ex-aluna de uma disciplina que davam em conjunto e entendeu de quem eu estava falando. Até tentou fazer alguns comentários, mas ela não lhe deu muita atenção porque para ela aquela história já estava maluca demais, naquele contexto.
     Subiu pensando em conversar com a tal amiga espírita, pois queria saber se havia realmente a necessidade dessa comunicação e quem sabe ela conseguiria usando médiuns, já que seus canais pareciam estar fechados, tendo em vista que o falecido estava perguntando por ela para alguém que mal lhe conhece por não conseguir se comunicar com ela nem ela estando diariamente na sua própria sala.
     Falou com mais duas pessoas antes de falar com ela, as mesmas que acham que tudo vem da sua cabeça e que esse rapaz pode ser no fundo, deve ser tão místico quanto ela... Mas a amiga espírita disse que achava que não, e que a mensagem estava muito clara para ela e não seria necessário nada mais. Ela interpretou isso como fazendo parte da ansiedade dele com relação a continuidade da sua missão junto aos pobres e aos profissionais de saúde que ele sensibilizava com a sua produção. A amiga esepírita acha que ele identifica nela esse potencial. Achou muito estranho e me perguntou: como?    
     Ficou estupefata, pois há duas doutoras, a citada anteriormente por ocasião dos roubos e das calúnias e outra, que escreve com ela, que dividiram os temas com os quais ele trabalhava e empreendem uma disputa (ainda aparentemente velada) pelo legado e a continuidade do seu trabalho.
     Ambas são de origem de classe média, brancas, tiveram muito tempo para se dedicarem exclusivamente aos estudos e ele demonstrava acreditar muito em suas capacidades de produção textual, em sua inteligência, admiração por ele e por tudo o que construiu com o seu trabalho.
     Então ela perguntou, logo eu? A amiga respondeu que acha muito natural que ele já saiba que elas não vão continuar seu trabalho, pois não vão se misturar com os pobres. Como a espírita é sua amiga e gosta dela , creio que deva identificar nela essa possibilidade, mas será que ele e ela identificam?
     Como saber a verdade, se em vida parecia que ele tinha sido convencido que ela não era tão capaz... Será que depois de apenas seis meses de morto ele já possa estar tão ativo, esclarecido e preocupado? Como saber se há uma mensagem e se é esta? E se a mensagem for essa mesmo, o que fazer? Pensou, mas também achou no momento que o melhor seria seguir fazendo a primeira coisa que lhe ocorre: parar essa reflexão por aqui e voltar para o artigo que no fundo não pretende nada mais do que homenageá-lo.
 
30 de março de 2010.