Enquanto o sono não vinha... EC

Há muito tempo... (rs) Eu queria iniciar este texto com o famoso “era uma vez”, mas este não é um conto de fadas.

Enquanto o sono não me vinha, eu gostava de ouvir o relógio de parede da casa da minha avó! Ele batia a cada meia hora: “ Din – don – den – dooonnnn – Don – den – din – doooonnnn ” .

Dona Maria de Lourdes, mais conhecida como vó Maria, assistia pela TV aos programas preferidos: Show do dia 7, Família Trapo, Os jogos do São Paulo, O direito de nascer do Albertinho Limonta, a buzina do Chacrinha aos sábados e os espetáculos circenses da Luta Livre! Ah! O Ted Boy Marino era lindo, um príncipe loiro. Só faltava o cavalo branco. Afinal eu também queria ser a Bela Adormecida. Toda menina queria!

Franzina e espevitada deitada em minha caminha aconchegante prestava atenção ao relógio, que parecia conversar comigo quando ela desligava a TV. Ele me divertia. Eu costumava cantar músicas do Roberto Carlos, no compasso das batidas: tic-tac, tic-tac... quandoooo vocêseseparooou de miiim... Jovens tardes de domingo.

As horas passam ligeiras, mas os anos parecem tão compridos na infância... A gente quer crescer depressa pra ver se a coisa melhora!

Dizem que na velhice acontece o inverso: os anos passam depressa, mas as horas são intermináveis. Seria porque a gente vira uma criança pelo avesso? Por que pelo avesso? Ara! Porque todo mundo gosta das estripulias e gracinhas de uma criança - criança! Estripulia de velho, não é gracinha; é senilidade. Assim pensam os mais novos.

O sono não demorava a chegar. Enquanto isso ficava a imaginar tanta coisa boa, apesar da realidade difícil. A cabeça reinventava tudo pintando os sonhos com cores vivas e contrastantes, mas a vida se apresentava em preto e branco, como na TV da minha avó.

De qualquer maneira, os minutos que antecediam o sono eram incríveis porque a imaginação, de repente virava sonho e parecia que durava a noite toda! Castelos, cavalos, campos verdinhos e perfumados, céu azul-brilhante, bonecas que se transformavam em gente, o pai e a mãe felizes, a família perfeita, balões, doces de padaria! humm... estas coisas que toda criança deseja. Reparando bem, não sonhava com o mar talvez porque nunca o tivesse visto de perto.

E quando a gente sonhava que estava caindo num precipício ou que um bicho vinha nos pegar? Lembra da sensação? Você sentiu a mesma coisa agora, não é, meu amigo leitor? Aquele frio na barriga, o suor, a falta de ar, o pânico! Queria correr, correr desesperadamente, entretanto não conseguia sair do lugar. Tudo acontecia em câmera lenta. Nossa! Sufoco total.

Pois é, muita gente sente isso hoje, mas não em sonhos. O medo das crianças é real. Agora elas temem os ladrões, os estupradores, os assassinos que dão ibope na TV. Realidade nua, crua e indigesta.

Quando o sono demorava demais eu falava baixinho:

_ Vó! A senhora já dormiu?

Ela respondia meio sonolenta:

_ Dorme menina! É tarde pra criança estar acordada. Dorme que eu estou aqui. Esta frase era mágica! Eu me sentia segura. Ela roncava baixinho.

Se eu demorasse muito para dormir logo me dava um golinho da água com açúcar da canequinha de alumínio amassada pelo tempo. Era a tampa da garrafa térmica que ela levava no trabalho.

Por que será que eu quase não sonho hoje em dia? Vai ver a cabeça já não é como antes. Tem tanta coisa aqui dentro... tanta coisa, mas posso contar nos dedos aquilo que realmente me faz sentir como criança. Cabe tudo de bom lá dentro da cabeça de uma menina maluquinha. Obrigada Ziraldo.

Se eu disser que fico transformando minha realidade em sonhos deslumbrantes, mirabolantes, alucinantes, a essa altura da vida vão-me dizer que preciso de um psiquiatra. O adjetivo sonhadora facilmente daria lugar ao substantivo loucura! Tenho que rir disso...

De tudo o que escrevi, o mais legal é que, enquanto o sono não vem, ainda fico ouvindo o tic-tac do relógio da minha avó, que hoje ocupa lugar de destaque na sala de casa, junto com duas cadeiras, um criado-mudo, a embalagem de talco, alguns cristais e o seu retrato. Tomo água com açúcar (demerara: o refinado faz mal) quando perco o sono. E não é que faz efeito? Se bem que não sei definir se esse efeito vem do açúcar ou da lembrança constante da minha avó que me tranquiliza e ainda é referência de vida. Se ela conseguiu eu também consigo!

Voltou para Deus em junho de 1996 aos 90 e tantos anos. Em minhas últimas visitas ela já não sabia quem era eu. Tudo bem, porque eu sabia exatamente quem era ela! Aliás, ela ainda é.

Escrevi este texto enquanto o sono não vinha. Durmo menos hoje em dia. Acho que dormir demais é um desperdício de tempo e de energia. Diz a Ciência que os hormônios do crescimento trabalham durante o sono. Como eu já passei desta fase (ó, faz teeeempo...) então dispenso esse período.

Não duvide. Eu tenho sonhos, sim. Mas só sonho com coisas que conseguirei realizar. Assim tudo fica mais fácil e acessível. Não quero saber o quanto de vida ainda terei. Apenas agradeço a Deus pelo tempo que Ele me tem dado a cada amanhecer, aqui, com aqueles que amo.

Agora me deu sono. Vou dormir. Boa noite gente! Até o próximo EC. Fui.

Caro leitor, este texto faz parte do Exercício Criativo (EC) – Enquanto o sono não vem – saiba mais e conheça outros textos em: http://encantodasletrs.50webs.com/enquantoosono.htm

Mariacris
Enviado por Mariacris em 21/01/2013
Reeditado em 12/07/2013
Código do texto: T4096576
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