Tonho das Almas e Tom Preto

Antônio era coveiro. Muitos anos de bons serviços prestados no cemitério. Cavando, entijolando covas, cimentando lajes. Com maestria e capricho. Se padre ou pastor faltasse, não seria por culpa dele que o defunto partiria sem ter a alma encomendada. Assumia o lugar de líder espiritual, sacando a Bíblia e o pequeno caderno de orações que carregava sempre consigo. Apenas perguntava à família se o finado era cristão e se católico ou evangélico. Conforme o credo, ele sapecava a reza certa. Mesmo com padre ou pastor, depois do sepultamento, sozinho, fazia a encomenda a seu modo. Achava mais garantido. Ninguém entregava tanto respeito e carinho aos escolhidos para a viagem até o outro lado da vida quanto ele. Ficou conhecido como Tonho das Almas.
 
Tomé era padeiro. Passava as noites fazendo massa. Antes de amanhecer, botava fogo no forno a lenha. Deixava tudo pronto, pãezinhos de água e francês cortados, forno quente. Quando o português chegava e levantava as portas de aço da padaria, a freguesia já podia levar o pão quentinho da primeira fornada do dia. Após o auge do movimento matutino, largava tudo e passava o bastão para o outro padeiro que só tinha o trabalho de assar os pães o dia todo. Então este não era padeiro, mas tão somente assador. Padeiro mesmo era o Tomé, e de mão-cheia. Moreno quase mulato que a população branquela do lugar logo apelidou de Tom Preto. Isso em nada o incomodava, pois não perdia oportunidade de reverencia a memória do antepassado que lhe deixara indeléveis pinceladas de negritude no DNA e o bronze bonito na pele. Sentia-se orgulhoso do avô retinto e deixava isso bem claro quando alguém, para simplificar, o chamava apenas de Tom. Corrigia imediatamente.
 
- Só Tom, não. Tom Preto. Com satisfação, às suas ordens.
 
Tonho das Almas e Tom Preto eram amigos inseparáveis. Quase irmãos. Unha e carne. Juntos na torcida pelo futebol do time amador do bairro, onde quer que ele fosse jogar. Também nas peladas de sábado à tarde e a cervejinha na boca da noite, porque ninguém é de ferro. A gafieira do Operário, onde o Tom Preto ensinava lições, tal a leveza natural com que girava pelo salão. Principalmente se dava sorte de ter como par a Estela, negra alegre e linda da cabeça aos pés. A melhor expressão da beleza da raça. Sorriso largo e permanente, tão boa quanto ele no bailado. Quando os dois se achavam, até o pistom da orquestra tocava melhor. Às vezes o entusiasmo deles era tanto que os outros casais paravam de dançar para abrir espaço e apreciar o espetáculo. No final, aplaudiam.
 
Em lua boa e se houvesse enterro apenas de manhã, os dois amigos combinavam uma pescaria para depois do almoço. Muitas vezes dava certo mais de uma vez na semana. Preparavam massinha para os lambaris. Arrancavam da terra minhocas e sanguessugas para os bagres. Importante chegar às barrancas do Barigui não muito tarde, para aproveitar bem a luz solar. Enquanto houvesse sol, anzol pequeno, linha fina e massinha para lambaris. Quando escurecia, mudavam de pesqueiro, trocavam linhas e anzóis e com as iscas vivas pescavam nos poços mais fundos. Antes da meia noite, apanhavam as bicicletas e voltavam. O Tom Preto ia direto para a padaria. Tonho das Almas para a casa. Às sete, com enterro ou não, tinha de abrir os portões do cemitério. Coveiro e porteiro, portanto. Mas só para abrir. À tarde, o escriturário fechava.
 
Talvez por estar acostumado a viver entre túmulos, ou porque se sentisse de fato protegido pelas almas boas, Tonho era corajoso. Nada temia, ao contrário do Tom Preto que, apesar do espírito extrovertido e permanentemente alegre, tinha medo da própria sombra. Uma contradição, quem sabe. Pois quase morreu enfartado nas barrancas do Barigui quando deu de cara com um enforcado frustrado.
 
Naquela tarde o tempo estava favorecendo o assanhamento dos lambaris. Quase completaram o samburá. Uma fisgada atrás da outra. Como não eram de perder beliscadas, em cada puxada vinha um peixe. Tarde boa.
 
Antes que anoitecesse, subiram pela margem esquerda do rio, carregando as tralhas e empurrando as bicicletas pelo caminho estreito e pouco batido. No poço bom, cevado naturalmente pelas sementes de um branquilho, prepararam caniços e linhas para tirar uns bagres. A noite caiu. Os pássaros cessaram o alvoroço e o silêncio debruçou-se sobre a mata ciliar. A quietude só era quebrada pelas sementes dos branquilhos batendo timidamente na água, expulsas por deiscência do fruto maduro. Nada mais.
 
Havia uma hora que estavam ali. Se a pescaria dos lambaris à tarde fora proveitosa, para bagres o rio não estava. Nenhuma beliscada para animar a noite. A lua cheia já podia ser vista através das copas das árvores e na água deixava o reflexo. Céu noturno claro. Peixe, nenhum.
 
De repente o silêncio foi violentado por um bater de galhos, vindo de dentro da mata. Uma batida só, como se fosse um galho grande caindo sobre outros. O Tom Preto, acocorado e distraído da vida, quase caiu no rio.
 
- O que foi isso, Tonho?
 
- Sei lá, deve ter sido um galho que quebrou com o vento.
 
- Que vento? Está uma calmaria só...
 
- Um bicho, talvez.
 
Foi só falar em bicho, um tatu assustado atravessou o caminho logo atrás deles, estalando os gravetos secos. Outro susto no Tom Preto.
 
- Êpa...
 
- Aquiete-se, Tom. Assim você espanta os bagres. Ou foi tatu ou ouriço.
 
- Tonho, não estou gostando nada disso. Sinto um desassossego, uma angústia. Os peixes não mordem a isca, barulho no mato e esse bicho correndo aqui, tirando fininha na gente. Ainda bem que não é noite escura.
 
O Tonho das Almas não respondeu, para evitar a continuidade da conversa. Falação demais espanta os peixes. Permaneceram quietos por quase uma hora. Então vieram da mesma direção do som do suposto galho quebrado alguns gemidos de sofrimento.
 
- Tonho, ouviu?
 
- Parece alguém padecendo. Vamos assuntar. Preste atenção.
 
Mais alguns minutos, nova série de gemidos. Igual a alguém engasgado tentando pedir socorro.
 
- Vamos embora, Tonho. Isso parece alma penada.
 
- Não seja bobo, homem. É alguém precisando de ajuda. Vamos procurar.
 
- Isso é loucura. Eu vou-me embora.
 
- Sozinho?
 
O Tom Preto ficou entre a cruz e a caldeirinha. Acompanhar o amigo na busca do aflito, ou enfrentar a noite sozinho no mato até alcançar a rua. Preferiu a primeira alternativa.
 
Munidos com a lanterna de três pilhas novas e armados com uma pequena faca, embrenharam-se na mata em direção aos gemidos. Quando eles cortaram a noite silenciosa de novo, o Tonho gritou.
 
- Precisa de ajuda? Aconteceu alguma coisa?
 
A resposta chegou em gemidos. Agora bem perto. O Tonho das Almas passeava o facho de luz em todas as direções. Ao chegarem numa pequena clareira, foi o Tom que viu.
 
Logo ele, o medroso, foi colocar os olhos sobre a lua redonda. Entre ele e ela, a figura sinistra de um enforcado no galho de uma árvore baixa e solitária. Vista à contra luz, a imagem era aterradora. Ao fundo o círculo da lua branca e no meio o contraste escuro de uma corda pendente de um galho. Na ponta, um vulto com as mãos acima da cabeça segurando a arma da tentativa de suicídio, procurando manter o corpo suspenso no ar de modo que o nó não apertasse tanto. Os pés balançando levemente em agonia, parecendo sem forças.
 
- Está vivo, Tom. Depressa, vamos cortar a corda.
 
- A vontade que eu tenho é de dar o fora. Isso deve ser visagem. Quem teria a infeliz ideia de vir se enforcar no mato uma hora dessas?
 
- Vou subir na árvore. Arrastando-me pelo galho, posso alcançar a corda. Vou cortá-la. Você fica aqui em baixo e apara o sujeito. Abrace-o para amortecer a queda.
 
- Eu!?
 
- E tem mais alguém aqui? Você é forte, vai conseguir abarcá-lo. Mas precisa ser rápido.
 
O Tonho das Almas conseguiu chegar até o galho. Esticou a mão direita e encostou o fio da faca na corda.
 
- Aguenta aí, companheiro. Vou cortar. Meu amigo lá embaixo vai tentar agarrá-lo. Talvez os dois se embolem no chão.
 
Dito e feito. A faca afiada atorou a corda com facilidade e o homem desceu como um saco de batatas sobre o Tom. Este o abraçou e foram os dois para o chão.
 
- Viu, Tom, como não era visagem? Tente afrouxar o laço - gritou o Tonho ainda em cima da árvore.
 
Com um pouco de esforço Tom Preto foi afrouxando o laço. A respiração do homem ia melhorando progressivamente. Mais abundante, a passagem do ar provocava nele uma leve e incômoda tosse.
 
Após alguns minutos o pretenso suicida já conseguia falar com voz baixa e rouca.
 
- Droga de laço. Emperrou e não fechou direito. Desta vez não deu. Acho que não sirvo nem para fazer um laço de forca.
 
Queixando-se assim, caiu no choro compulsivo. Tonho das Almas e Tom Preto sentaram-se no chão, ao lado dele, e permaneceram calados até que o pranto e os lamentos cessassem por completo.
 
- Desculpem a trabalheira. Não sei se agradeço. Em todo caso acho que foi bom vocês estarem por perto. Não por terem me salvado a vida, que eu já não queria. Mas por terem aliviado o meu sofrimento. Morrer com lentidão e agonia, eu posso garantir que não é nada bom. Não esperava por isso. Pensei que o impacto da queda já seria suficiente para me quebrar o pescoço e jogar-me em estado de inconsciência. A morte viria como consequência e sem dor. Mas não foi o que aconteceu. O pescoço ficou inteiro e o laço não funcionou. O sufocamento lento tirou-me as forças para me livrar da corda. Iria morrer à míngua.
 
- Não precisa agradecer - disse Tonho das Almas. Deus quis lhe dar nova oportunidade. Sua missão por aqui ainda não foi cumprida integralmente. Não pode deixá-la incompleta.
 
- Não entendo dessas coisas. Para mim a vida acabou. Não tenho mais nada para fazer aqui. Se desta vez não foi possível, fica para a próxima. Outro método, talvez.
 
- Não fale assim - interveio Tom Preto. Também não entendo muito disso. O Tonho, que é meio padre, meio pastor, sabe bem. Além disso, é coveiro, já despachou muita gente. Mas uma coisa eu lhe digo. Melhor aqui do que em qualquer outro lugar deve ser. A tristeza você empurra de lado e vai vivendo a vida. Dando boas risadas. Uma pescaria, um baile bom. Uma cachacinha de vez em quando para embaralhar as ideias e depois acertar de novo. É a vida.
 
- Você diz isso porque não sabe o que é dor de corno. Apostar todas as fichas na mulher amada para um dia descobrir que ela tem outro. Pensar que era alvo de deboche da vizinhança. Indiretas dos parentes. Gestos obscenos dos amigos. Você passa por tudo isso, mas só fica sabendo o porquê muito tempo depois. Daí entende tudo e quer se matar.
 
- Pois olhe - disse o Tonho das Almas - a gente descobrir que é corno não deve ser nada bom. Deus me livre! Mas a vida tem um montão de coisas boas para ajudar a superar os infortúnios. Ajudar a levantar, empurrar a gente para frente, seguir vivendo. Tudo passa. E não se esqueça de que você não comprou a vida no armazém da esquina. Ganhou ela de presente e presente não se joga fora não. É desfeita. Você não tem esse direito.
 
- Pois então chega de lero-lero. Fico agradecido. Agora preciso ir. Aliás, nem sei se preciso, mas devo ir. Ficar aqui a noite toda não dá - disse o salvado com a voz ainda bem rouca e no volume de um sussurro.
 
- Não vai a um hospital ver o pescoço e a garganta? - perguntou o Tonho das Almas.
 
- Não precisa, estou bem. A voz deve melhorar com o tempo.
 
- Então espere um pouco. Eu e o Tom Preto vamos recolher as linhas, juntar a tralha e depois seguimos com você. Mas antes me deixe ver seu pescoço.
 
Com a lanterna Tonho das Almas iluminou o pescoço do homem. Constatou as escoriações deixadas pela corda de sisal. Não pareciam graves. Provavelmente no dia seguinte iriam aparecer marcas roxas.
 
Saíram os três da mata e subiram a rua em direção à cidade. No quinto quarteirão o homem entrou à direita, dizendo que morava ali. Era um beco sem saída. Despediram-se com mais alguns conselhos dos dois amigos. Se ele os acatou, nunca ficaram sabendo. Pelo menos não tiveram notícia de suicídio na região durante muito tempo. O coveiro e o padeiro partiram torcendo para que, ao contrário do beco onde morava, para o infortúnio do infeliz houvesse saída. E que ele a encontrasse logo.
 
Tonho das Almas e Tom Preto seguiram levando a vidinha de sempre. Imunes a grandes solavancos, mas com alegria e prazer diuturnamente encontrados nas pequenas coisas.
 
Numa tarde de um novo verão, tocaram-se os dois rumo ao Barigui para mais uma pescaria. Desta vez resolveram experimentar a outra margem. Cruzaram o rio pela desgastada ponte de madeira, abandonaram a rua e entraram no caminho da margem direita empurrando as bicicletas. Tonho das Almas na frente e Tom Preto atrás. Ainda não tinham vencido uma centena de metros quando o primeiro bateu com o pé numa touceira que ladeava o caminho batido. Três passos depois, ele ouviu o grito do companheiro.
 
- Ai! Ela me pegou.
 
- O que foi, Tom?
 
- A jararaca. Estava nesta touceira. Deve ter despertado quando você passou por ela. Picou meu tornozelo.
 
Tonho ainda pode ver a serpente de cerca de um metro esgueirando-se pelo mato rasteiro e sumindo rapidamente da vista deles.
 
Imediatamente os dois voltaram para a rua e tomaram a direção da cidade, na esperança de encontrar carona que os levasse rapidamente ao pronto-socorro. A rua não era de movimento. Ninguém motorizado aparecia. Somente com uns três quilômetros, ou pouco mais, de caminhada, surgiu na curva do esqueleto um caminhãozinho vindo da colônia. Fizeram sinal. Parou. Explicaram a emergência em que se encontravam.
 
Sem tirar o cigarro de palha da boca, o colono mandou que jogassem as bicicletas na carroceria vazia e embarcassem na cabine. Acelerou o velho caminhão até o pronto socorro, distante do lugar, em outro bairro. Quando chegaram, o generoso homem, começando a enrolar pacientemente um novo paiova, disse que ficaria esperando. Buscassem o socorro necessário e não se preocupassem com o tempo. Depois os levaria para casa.
 
Tiveram sorte. O atendimento não demorou e o ambulatório dispunha de soro antiofídico. Tom Preto já começava a sentir os efeitos do poderoso veneno. A nitidez da picada e os primeiros sinais de inchaço e hematoma no local sugeriam que a quantidade de veneno inoculada fora bem grande. Ou o organismo da vítima possuía sensibilidade muito acima do normal. Apesar disso, não pernoitou no hospital.
 
Naquela noite o português da padaria não pode contar com o habilidoso padeiro para fazer a alegria da clientela no dia seguinte. Felizmente conhecia o ofício e colocou a mão na massa.
 
De manhã a perna lesionada apresentava inchaço descomunal do joelho para baixo. O pé roxo em volta da ferida. Também discreto sangramento do nariz. Tom Preto não estava nada bem. Procurou o hospital novamente. Ficou internado.
 
Após alguns dias de internamento, a saúde do Tom Preto piorara, em vez de melhorar. O pé apresentava sinais de necrose. Os médicos concluíram que só havia uma solução para evitar problemas mais sérios e até o óbito: a amputação. Dar a notícia a ele não foi tarefa fácil. Coube ao Tonho das Almas fazê-lo. Primeira vez que viu o companheiro chorar.
 
A cirurgia foi bem sucedida. Duro mesmo a ferida na alma. Tom Preto entregou-se a imaginar como seria sua vida dali em diante. Faria tudo de forma diferente. Outras coisas talvez nunca mais ele voltasse a fazer, ou não as faria com a mesma desenvoltura. Adeus às peladas de sábado à tarde. Ao bailado no Operário com a Estela. Mesmo que se adaptasse a uma prótese, dificilmente voltaria a dançar com a mesma leveza de antes.
 
Estela foi visitá-lo no hospital. Quando o viu na cama, desfigurado e triste, não se conteve. No abraço de amigos caiu em prantos. Enquanto sentia o rosto do companheiro de baile no seu, deu-se conta de que assim não estaria ajudando. Na contramão da necessidade, apenas incrementaria o pânico e a tristeza. Conteve as lágrimas, aprumou-se e percebeu que Tom também chorava. Com esforço, abriu o sorriso que pode, expondo os alvos dentes que ele tinha visto tantas vezes brilhar no salão do Operário, fazendo dueto com os seus enquanto dançavam alegremente.
 
- Anime-se, Tom Preto. Ainda vamos dançar muito. Com uma boa prótese tudo ficará resolvido, vamos bailar como sempre. Ganhar concursos.
 
O presidente Tatu também apareceu. Aproveitou para levar a fotografia emoldurada do concurso de dança de gafieira que o casal havia participado no mês passado em outro clube, defendendo o Operário. Primeiro lugar. Tentou transmitir coragem, dizendo que outras fotos e troféus viriam mais tarde, com novas conquistas. Ele que tivesse fé e confiança.
 
Apesar da boa cicatrização do corte, outros problemas começaram a complicar a recuperação do padeiro. Pressão alta, insuficiência renal. UTI.
 
Foram três dias na UTI. Os médicos avisaram. Só aguenta até amanhã. Sinais vitais piorando. Falência múltipla dos órgãos. Não há mais o que fazer.
 
Tonho das Almas estava no hospital quando o médico de plantão deu a notícia. Tom Preto não resistira.
 
Muitas vezes imaginara lacrar a sepultura de moradores antigos do bairro e até de parentes, os mais idosos. Estava acostumado com isso. Porém, jamais passara pela cabeça do Tonho das Almas um dia sepultar o grande amigo, quase irmão e tão novo de idade. Infelizmente o dia chegou sem aviso e muito antes da hora que poderia ser chamada de normal.
 
No cemitério, na hora de entregar o corpo do Tom Preto à terra, Tonho das Almas lembrou-se de que, apesar dos anos de amizade, não sabia qual era a religião do parceiro, se é que ele tinha alguma. Queria fazer a encomenda da alma, pois não havia ali nem padre nem pastor. Perguntou à irmã. Ela respondeu que o irmão não era apegado a nenhuma, mas tinha certeza de que ateu ele não era.
 
Desse modo, Tonho das Almas decidiu misturar os ritos. Um pouco dos católicos, um pouco dos crentes. Contendo como pode a emoção e as lágrimas, demorou-se nas orações de um e de outro. Leu trechos da Bíblia e orações do seu caderninho. Terminou com breve discurso enaltecendo as qualidades do amigo e lembrando a amizade e lealdade entre ambos.
 
Quando todos foram embora, Tonho das Almas sentou-se no chão, junto ao túmulo do companheiro, e pôs-se a conversar com ele, como se ele estivesse vivo ao seu lado. Só então caiu no choro.
 
Foi despertado do transe por uma mão amiga no ombro. Ergueu a cabeça e enxugando as lágrimas com o dorso da mão, deu com seus olhos embaçados no rosto triste de Estela. Ela, estendendo-lhe a mão, ajudou-o a levantar-se. Sem palavras, abraçaram-se na dor comum e enlaçados como irmãos deixaram o cemitério. Não mais as pescarias, as peladas de sábado à tarde, a gafieira do Operário. A vida, do lado de cá, teria de seguir adiante sem o sorriso e a alegria do Tom Preto.


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N. do A. - Na ilustração, galho de branquilho com flores.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/10/2012
Reeditado em 30/06/2021
Código do texto: T3959835
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