O cão e o vagabundo
 
Foram chegando aos poucos. Cada um trazendo na bagagem suas desgraças, infortúnios, lembranças e vícios. Como foram parar ali na praça não sabiam direito. Talvez pela força de atração invisível de uns pelos outros. Como caíram nessa vida todos sabiam muito bem. Só não gostavam de contar.
 
Dureza relembrar a traição da mulher amada. A bebida tomando conta do corpo até a dependência total e o repúdio da família e dos amigos. A filha que escolheu o bordel como meio de vida ou o filho que um dia apareceu de surpresa em casa com o namorado a tiracolo. A dificuldade para manter-se no emprego ou firmar-se na profissão. A mesa de jogo que engoliu o patrimônio e as boas amizades.
 
Cada um, enfim, trazia a sua própria história, cujo amargor tentava sufocar com goles de cachaça ou etanol com água. Diante das agruras da vida, em comum faltou-lhes coragem para o suicídio ou forças para superá-las e dar a volta por cima. Preferiram esconder-se de si mesmos nas ruas, o que não deixa de ser uma forma da primeira alternativa.
 
O Zé foi o primeiro. No começo eram só ele e o vira-lata que um dia, sem dono, resolveu segui-lo. Não o largou mais. Aonde o Zé ia, o cão ia atrás. Até que não teve mais jeito. A afeição passou a ser mútua. O vagabundo ganhava um pão, dava a metade para o cachorro. Se fosse um prato de comida, também dividia com o companheiro. Companheiro? Então precisava de um nome.
 
Contemplando o cão preto de porte médio, que lambia o gosto da comida que ainda impregnava o fundo da marmitex trazida até eles pela caridade de um morador do bairro, o Zé se pôs a matutar. Que nome poderia combinar com o parente distante de um pastor belga? Nero, talvez. Mas não tinha cara de mau nem de louco. Qual Roma ele incendiaria? Teria matado a própria mãe? Seria este o seu desgosto e o motivo de ter abandonado o lar para segui-lo? Não parecia. Contudo, outro nome não lhe vinha à cachola enfraquecida pelo torpor etílico. Nerinho, então. Nerinho, pronto.
 
- Vou chamá-lo de Nerinho. Viu, Nerinho?
 
O cão fez festa abanando o rabo. Deve ter gostado do nome. Ou do contentamento raro visível no semblante do vadio. Se eles dividiam a comida e as ruas, por que não dividir a alegria também, se de repente ela dava as caras?
 
Passavam boa parte do dia na praça defronte a igreja. Muitas vezes dormiam ali mesmo, ao relento. Mas não mantiveram por muito tempo a exclusividade do lugar. Logo apareceu mais um companheiro de infortúnio. Nos horários das missas fingiam que tomavam conta dos carros dos fiéis em troca de alguns centavos. Juntavam o que ganhavam para comprar cachaça em sociedade. Se sobrava algum, uma ou duas fatias de mortadela. Às vezes o dono boteco dava o pão amanhecido. Nerinho sempre recebia sua quota. O Zé não esquecia. O outro não tinha nada com isso, mas colaborava quando podia ou lhe desse na telha.
 
Depois vieram mais dois e um terceiro. E outro. Formaram uma confraria de maloqueiros na praça da igreja. Vez ou outra um deles se encorajava e entrava no meio da missa. Um Sinal da Cruz desajeitado, finalizado com o desnecessário beijo no indicador, e uma oração incompleta balbuciada para dentro. Saía pensando que tinha rezado. Talvez tivesse. Quem o julgaria?
 
Como já eram muitos, a renda, que não crescia, tornou-se insuficiente para satisfazer a todos com pinga. Ficavam com os nervos atacados e brigavam. Logo faziam as pazes, ou esqueciam que tinham brigado. O Nerinho nunca tomava partido, desde que não mexessem com o Zé. Nele ninguém encostava a mão. Vislumbrando qualquer ameaça, o bicho mostrava os dentes e rosnava. Impunha respeito na roda. E que ninguém ousasse tentar afastá-lo a pedradas. Aí era o Zé quem rosnava e atacava.
 
Ao lado da outra praça, não muito distante da igreja, havia um terreno baldio. Pretenderam construir uma maloca. Arrumaram restos de madeira, galhos, lona de plástico velha e botaram a mão na massa. Alguém os denunciou. Veio o dono e correu com eles antes que o barraco ficasse pronto.
 
O Zé estava com a saúde abalada. Dificuldade para caminhar. Improvisou um cajado com o galho seco caído de uma árvore grande. Andava um pouco e cansava-se. Respirava com dificuldade. Acabado para a pouca idade. Parecia velho antes dos quarenta.
 
Manchete no jornal: Morto pelo frio. Foi o Zé. Não aguentou o inverno. Não procurou abrigo à noite, morreu na praça.
 
Estava demorando para acordar. Nerinho ficou incomodado. Andava em volta dele. Lambeu-lhe o rosto, mas o Zé não se mexia. Ensaiou uns latidos. Outro maloqueiro foi ver.
 
- Acorde, Zé. O dia raiou. Vamos tratar da vida.
 
Cutucou-o com os pés. Vendo que o confrade permanecia inerte, foi bater na casa em frente. O homem veio e constatou:
 
- Está morto. Vou chamar a polícia.
 
O Nerinho deve ter entendido, ou concluído pelos seus próprios meios. Deitou-se junto ao corpo com os olhos tristonhos e o rabo entre as pernas. Quando o rabecão chegou, colocou-se em pé. Virou fera. Não deixava ninguém chegar perto. Latia, mostrava os dentes e avançava.
 
O cabo e o soldado que atenderam a ocorrência tiveram muito trabalho para afastá-lo, a fim de que o pessoal do IML pudesse coletar o defunto. Machucar o cão valente ou fazer-lhe mal não queriam.
 
O carro partiu levando o Zé. Nerinho tentou acompanhá-lo, correndo atrás. Três quarteirões depois, desistiu. Muita velocidade para um cão debilitado. Voltou para a praça carregando um fardo de agonia e dor. Estendeu-se no mesmo lugar onde o amigo morrera, procurando ainda sentir o seu cheiro. Permaneceu assim durante horas, imóvel, taciturno. Patas dianteiras esticadas para frente. A cabeça enfiada entre elas, focinho rente ao chão. Pálpebras cerradas escondendo os olhos opacos de tristeza.
 
O vira-lata nunca mais abandonou a praça. Os maloqueiros iam e vinham, mas ele não arredava pé. Recusava-se a ir com eles, como antes. Por compaixão, alguém sempre lhe trazia água limpa e sobras de comida. Desse modo, embora triste, mantinha-se vivo. À espera do Zé.

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N. do A. - Na ilustração, Charles Chaplin e o cão-personagem Scraps em cena do filme Vida de Cachorro, de 1918.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 01/10/2012
Reeditado em 22/05/2020
Código do texto: T3910064
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