" DA VIRGINDADE..."

"DA VIRGINDADE..."

Sophia Vitoria ouvira a voz do médico e ato contínuo sua mente enclausurou-se em si mesma. As palavras passaram a soar amorfas, rarefeitas, destituídas de um conteúdo lógico e verossímil.

Em pouco tempo a moça estava deitada em seu novo leito. Ao lado da cama uma profusão de fios ligava a paciente a uma parafernália desconhecida. De quando em quando, a moça olhava para suas mãos...

O vermelho das unhas destacava-se morbidamente do tom marmóreo quase sepulcral de suas mãos...

Procurou em vão por seu anel, no qual se incrustara uma grande pedra de topázio amarelo. Lembrou-se então que todos os seus pertences estavam sob a guarda de sua veneranda e guerreira mãe...

Olhou para si e vislumbrou seu corpo belo, magro, ainda insinuante coberto por um tecido grosseiro, o qual anulava despoticamente os resquícios de toda e qualquer sensualidade.

Estava tal e qual uma sentenciada. Não podia deixar o recinto hospitalar sem a prévia autorização do corpo clínico; e a todo o momento seus movimentos e condutas eram monitorados mecânica e logisticamente por uma hábil equipe técnica. O menor sinal de rebeldia poder-se-ia ser interpretado como uma espécie de falta grave e ela assim perderia o direito de voltar para sua casa.

Só estava faltando um único item para completar o quadro: a identificação em seus pés em caso de morte... Daí então, a analogia que fizera entre estar internada e o cumprimento de pena em um estabelecimento penal restariam perfeitos.

Começou a chorar. De início as lágrimas apenas lavavam os seus olhos, mas com o correr das horas o pranto tornou-se convulsivo...

Não poderia morrer desconhecendo o real significado da vida... Onde estava o resplandecente amor imortalizado nos versos dos visionários poetas e dedilhado por virtuosas mãos que acariciam dolentemente as teclas de um piano apaixonado?

Onde? Onde? Onde?

O vácuo do silêncio, cruel em sua natureza omissiva permanece irresponsivo.

Alquebrado, debilitado, o jovem corpo estremece diante da desairosa coleta de sangue. Assustada a enfermeira solta precipitadamente a seringa e o líquido aos borbotões tinge de rubro o lençol da cama da doente.

Sophia Vitoria olha com estranheza o penetrar escarlate na pureza do alvo linho... Nem mesmo por ocasião das suas regras chegara a macular por uma noite sequer o níveo de suas cobertas...

Agora seu sangue concentrava-se em um ponto determinado do lençol tornando a mancha ainda mais visível... Teve ímpetos de mandar exibir à janela de seu quarto o lençol manchado...

Ali estava virgem, pura, donzela e doente à espera da morte que insidiosa subia a passos de seda a escadaria do hospital pronta a colhê-la em um indefensável instante. Os ditames da honra e boa fama pareciam entreolhar-se zombeteiros... Mais uma vítima deles sucumbiria... Mais uma cálida e melancólica alma, abandonaria o catre carnal sem vivificar a supremacia dos sentidos sobre o rastejar dos vis e repugnantes preconceitos!

Neste instante, Sophia Vitoria desliza sua mão sobre seu corpo. Sente um queimor, uma vontade de viver e naquele momento as palavras escritas nos ditatoriais códigos de costumes revogam-se por completo...

Mais uma vez suas mãos percorrem o seu corpo... Pele, pele e mais pele!

Por que então salvaguardar uma minúscula porção de carne escondida no interior de suas entranhas?

Os dias correm e a moça finalmente obtém sua alta... Os médicos juízes assinam seu "alvará de soltura" .Independente, livre das amarras e nós está ela pronta para viver e ser apresentada a um grande amor.

O lençol que por tantos anos manteve-se imaculado a esperar este momento, por fim coloriu-se... As estrelas enamoraram-se da noite e a aurora por fim fez-se rubra!

* Nota da Recantista: Em projeto de Registro na Biblioteca Nacional