Carpe diem

A porta está trancada e nem sei onde pus as chaves. Deixei sobre o fogão a comida, caso chegue e queira comer, esquente no forno, ponha a mesa, pegue prato e talher ou coma com as mãos mesmo. Não me importo, não me interessa nem quero saber. Acendi um cigarro e estou vendo-o queimar. Quanto tempo já não fazia isso? Há tempo que já deixei de contar o tempo de dadas coisas, há tempo que nem sei se o tempo existe. Enquanto pinto esse quadro me vêm essas coisas esquisitas... Penso em você, tudo bem? Posso? Perdão, use a sua piedade cristã para perdoar qualquer coisa, o cheiro da tinta é muito forte e talvez eu esteja meio que... Odeio ter de dar explicações e olhe que sei que você nem gosta, não é mesmo, tanto que nunca me explicou nada. Às vezes acho que o céu não é mesmo azul, sério, chego a acreditar que as cores simplesmente residem dentro de mim. Gosto de inventar. Gosto de quebrar estigmas, gosto de você e de mim, por segundos. Nossa, acabei de fazer uma mistura terciária. Pretendo batizar essa cor como descoberta minha, o que acha? Desculpa, novamente eu e minhas inseguranças. É que você sempre foi tão, como posso dizer, tão firme nas afirmações e decisões que; a porta está do mesmo jeito. Trancada. Não sei onde está a chave. Já tentei abrir por vezes e por vezes fracassei. Será eu um fracasso da vida? Nossa acho que sem querer, intuitivamente pintei seu rosto na tela. Conheceria esses olhos, conheceria, em qualquer canto. Bom, muito bom trabalho, mas se pudesse contornar mais as silhuetas do lado esquerdo da orelha e do queixo, droga! Droga! Eu quase que sabia que isso iria acontecer. Desfigurei o seu rosto. Você não me aparece mais na lembrança e vagamente tenho surtos e esse tão concreto me deixei escapar. Vá esquentar sua comida e mastigá-la longe de mim, ande, vá... Odeio lembrar sua salivação infernal e a comida caindo pelo canto da boca. Nojo. De você. De mim. Desse quadro. Das tintas. Nojo tinta quadro mim você... Queimou todo o cigarro, morreu completamente e a fumaça vaga pelos cantos da sala. Cala sua voz dentro de mim, calo nos dedos de tanto manusear o pincel, infernal pincel que me cansa os movimentos. A porta fechada, as chaves perdidas, a comida fria e uma sede de mim a me infringir por completo, completo delito.